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Segunda-feira, 6/3/2006 Filmes extremos e filmes extremistas Marcelo Miranda Há alguns meses levantei neste espaço a idéia de filmes maduros e filmes imaturos. Não foi algo teórico, diria até de natureza mais prática, sobre pensamentos que me passavam pela cabeça e eu dividia com amigos e conhecidos a respeito da natureza e da abordagem de alguns filmes. E agora pensei em falar de outra dobradinha: filmes extremos e filmes extremistas. Desde já, repito o que disse antes: não sei o quanto a discussão é válida ou realmente interessante a alguém além de mim. De qualquer forma, serve de bom exercício de lembranças e referências. Falemos dos filmes extremos. O que seriam? Basicamente, o cinema extremo consiste em produções que levam ao limite do suportável a violência e as situações de tensão e medo, sem deixar cair em apelações baratas, mau gosto ou trash absoluto. São trabalhos de forte carga emocional, no sentido de provocar no espectador inquietação e incômodo, seja através das imagens, da temática ou da linguagem. Enfim, filmes que vão além do que o tradicional aconselharia, sempre com o intuito de mexer com os brios de quem assiste das mais variadas (e por vezes sádicas) formas possíveis. Um exemplo claro nesse sentido, entre tantos, seria Audition (1999), filme japonês de Takashi Miike inédito em circuito comercial brasileiro, somente disponível em DVD importado ou via programas de download - na verdade, o Festival do Rio chegou a exibi-lo há uns quatro anos, com o risível título O Teste Decisivo; e o diretor paulista Carlão Reichenbach também já o apresentou em sua tradicional Sessão do Comodoro, no CineSesc. De qualquer forma, pouca gente no Brasil assistiu ao longa de Miike, diretor prolífico (chega a filmar quatro produções num mesmo ano) e atualmente uma lenda no cinema oriental por seus trabalhos ousados, provocantes e controversos. No caso de Audition, ele narra a tentativa de um viúvo em conseguir nova esposa. Para tanto, o homem promove um concurso no qual as inscritas acham estarem disputando vaga no elenco de determinado filme. Decidida quem seria a "felizarda", o protagonista inicia um romance com a garota. Só que ela possui comportamento bastante esquisito, e vai tornar a vida do atual namorado um pesadelo.
Característica do cinema extremo é a não necessidade de enredos elaboradíssimos. O que conta, afinal, são os desdobramentos da história. E aqui, eles vêm a conta-gotas, para desembocar em seqüências realmente de dor lacônica. Audition muda o foco em 180º, do drama romântico para o horror, em questão de minutos, e coloca o personagem principal literalmente à mercê de torturas físicas e psicológicas poucas vezes mostradas com tamanha crueza. O rigor de Miike jamais permite que o filme desemboque em grosseria, e aí reside seu talento no cinema extremo: tornar a violência não simplesmente um fetiche, e sim instrumento de expressão e idéias. Claro que nem todos são Takashi Miike. Nem todos são capazes de manter a fetichização pelo horror longe da tela. Só que alguns sabem "fetichizar" muito bem, apesar das limitações artísticas. É o caso, surpreendentemente, de Marcus Nispel, responsável pela refilmagem de O Massacre da Serra Elétrica lançada em 2003. O filme pode até ter chegado aos cinemas meio como uma piada, muito por conta dos péssimos rumos dados à mitologia do filme original de 1974. Porém, Nispel usou e abusou da produção proporcionada por Michael Bay (diretor de coisas terríveis como Armageddon) para encher seu filme de belos momentos de suspense e terror. Poucos exemplares americanos foram tão eficazes no quesito medo e inquietação numa sala escura nos últimos cinco anos. Este novo Massacre dá novo tom à saga dos jovens atacados por uma família de canibais, apostando mais em corpos esculturais das moças e na sangria desatada dos ataques ao grupo. O que pode aparentar besteira sem razão de existir torna-se misto de diversão e pavor por conta da criatividade do diretor, de sua coragem em expor na tela cenas sangrentas sem grandes preocupações com o politicamente correto e por ainda inserir um momento de grande brilho, quando certo personagem, no auge da dor e do sofrimento, pede à amiga que o mate - criando relação improvável com o drama Menina de Ouro, de Clint Eastwood, lançado no ano seguinte. Isso é ser extremo.
Outro extremo que chegou até nós com alarde foi Kill Bill, principalmente o primeiro, em 2003. Caldeirão de citações e paixões do diretor Quentin Tarantino, o "volume 1" da saga da Noiva (Uma Thurman) deixava para os momentos finais quase que a razão de ser do filme: o banho de sangue promovido pela protagonista numa cena alucinante de luta com espadas. Deve ser a maior concentração já vista de pernas, braços e cabeças voando pelos ares, com direito a muito sangue falso, esguichos e piadas de humor negro. Não é porque o tratamento é mais caricatural que deixa de ser extremo... A quem se interessar, está em cartaz no Brasil um excelente exemplar desse estilo de filme: o australiano Wolf Creek - Viagem ao Inferno, que retorna ao jeito "massacre da serra elétrica" e coloca trio de amigos em viagem no interior do país à mercê de um maníaco interessado em trucidá-los. Há belos momentos, como a interação dos três personagens, o surgimento do psicopata e a atenção do roteiro a cada um dos jovens sem jamais estereotipá-los. Quem for rato de cinefilia, pode caçar duas pérolas: o sueco Thriller - A Cruel Picture (1974), de Bo Arne Vibenous, inspiração para Tarantino criar Kill Bill e que possui cenas de sexo explícito e matanças em câmera lenta cheias de estilo e técnica; e o proibidíssimo Canibal Holocausto (1980), do italiano Ruggero Deodato e tido como o filme mais famigerado e extremo do cinema. Não sei se a alcunha é verdadeira, mas a obra é uma pérola em se tratando de cenas de violência. Beira o inacreditável, em roteiro imbuído de um interessante discurso sobre a moralidade em torno da veiculação de - que ironia! - imagens extremas.
Em sentido inverso, os filmes extremistas se preocupam menos com o impacto estético da obra em contato com o espectador para gastar película na propagação de idéias muitas vezes retrógradas ou moralmente questionáveis - quando não realmente condenáveis. Um dos maiores clássicos nessa linha é o campeão de reprises Desejo de Matar (1974), de Michael Winner. Protagonizado por um sisudo Charles Bronson, mostra a tragédia de um arquiteto que tem a esposa assassina e a filha estuprada por bandidos. Inicialmente pacifista e alheio à violência ao seu redor, Paul Kersey (o arquiteto) acaba sucumbindo à vingança e torna-se um justiceiro urbano, eliminando a corja de criminosos espalhados pela noite. Vende-se a noção de "olho por olho, dente por dente": Kersey não precisa nem quer eliminar especificamente os responsáveis pelo ataque à família. Para ele, está de bom tamanho apenas assassinar qualquer um que se mostre perigoso - e para tanto, ele passa as noites caminhando pelas ruas onde os índices de crimes são maiores, para dar sempre de cara com algozes que assumiu como seus. Como diria o crítico pernambucano Kleber Mendonça Filho, está aqui um "filme do mal". Da safra mais recente, dois trabalhos são tão mesquinhos e reacionários que mereciam o desprezo por parte dos espectadores, não fosse a aura de "supeproduções de ação" que eles sustentam, como se isso os redimisse de qualquer questionamento. O primeiro deles é Bad Boys 2, de Michael Bay (o mesmo que produziu a versão atual de O Massacre da Serra Elétrica): a sucessão de cenas repugnantes envolvendo cadáveres, tiroteios e deboches com armas é um festival de mau gosto, num filme que faz o que pode para soar engraçadinho, mas esconde por trás do jeitão despretensioso idéias realmente perigosas sobre a "periferia" do mundo - no clímax, a dupla formada por Will Smith e Martin Lawrence invade território cubano e, numa caminhonete, destrói dezenas de barracos de uma favela do país sob pretexto de ali morarem apenas bandidos e traficantes. A diversão no rosto dos personagens, a forma como Bay filma a cena (com direito a mostrar roupas penduradas nos varais) e o prazer em destruir qualquer objeto à frente é apenas o momento mais alto de um longa completamente equivocado.
O questionável nesses exemplos não são pura e simplesmente as atitudes dos personagens, mas a forma como o filme as expõe e aborda. Numa série como 24 Horas, por exemplo, há o protagonista (Kiefer Sutherland) que não mede esforços para passar por cima de leis e moralismos em nome da defesa nacional - mas o seriado explora os problemas que isso lhe causa em termos pessoais, pondo na parede se o preço pago por ações extremistas vale a finalidade proposta.
Então... Bom, aí quem sabe eu não saio atrás de vingança? Marcelo Miranda |
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