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Sexta-feira, 31/3/2006 Sombras Persas (III) Arcano9
O metrô é mais um caso curioso de semelhança de Teerã com a capital paulista. Três linhas - uma azul, uma vermelha, uma verde. A azul e a vermelha são mais longas e com mais estações. Entro numa estação perto do meu hotel e me espanto com o contraste entre seu interior e as ruas no exterior. A estação é limpíssima, bem sinalizada. A composição se aproxima da plataforma e nada parece incomum. Aí percebo: ao meu redor, só há homens. As mulheres, ou 90% delas, estão todas acumuladas em uma das extremidades da plataforma, esperando para preencher os dois últimos vagões. As poucas mulheres que se aventuram nos vagões masculinos parecem ser turistas ou esposas com seus maridos. Nos vagões femininos, um mar de panos negros, os chadores que se interconectam como células ao microscópio. Na estação, não vejo nenhuma placa a respeito de restrições à entrada de um sexo ou outro em determinados vagões, o que me faz concluir que não se trata de uma imposição oficial das autoridades. Nos ônibus urbanos, a separação também existe: os homens vão nos bancos da frente, as mulheres, nos bancos de trás. Tenho a impressão de que muitas das mulheres preferem assim, preferem a segurança de ficar longe de homens que podem se engraçar com elas. Lembro que, em setembro de 2004, entrou em vigor uma lei na França proibindo o uso dos véus islâmicos nas escolas do país, o que causou um grande debate no país opondo religiosas, que queriam autorização para continuar cobrindo a cabeça, e as que queriam se livrar do que consideram símbolos de opressão. Na Turquia, com sua fixação pelo secularismo, é ainda pior. Num país majoritariamente muçulmano, o uso do véu é proibido em escolas, universidades, atos públicos oficiais. Muitas mulheres manifestam abertamente sua oposição. Será que elas gostam de esconder o cabelo? Será que isso lhes dá respeito? Será que esta não é apenas uma questão de conceder liberdade de escolha? As perguntas sacolejam na minha cabeça, junto com o trem, e me acompanham durante o dia. Num parque da cidade, mais ao sul, encontro uma casa de chá. Tomo o líquido fervente e saboreio o narguilé (o cachimbo d'água, uma garrafa de vidro fechada com uma mangueira pela qual você fuma, um objeto comum em todos os países do Oriente Médio) com gosto de limão, produzindo com ele grossas nuvens de reflexão sobre o tema da segregação sexual na sociedade iraniana. Para aprimorar o foco da minha análise, tâmaras e docinhos de mel. O parque é uma bênção verde no infernal sul da cidade, perto da Praça Khomeini. Alguns velhinhos e jovens desocupados vêm para cá passar o tempo. Uns vêm especificamente para jogar xadrez. Curiosamente, o jogo - que teria nascido na Índia, mas cujas peças mais antigas foram encontradas em terras do Império Persa - passou muito tempo, depois da Revolução Islâmica, na clandestinidade. O aiatolá o baniu acreditando que ele incentivava a prática de apostas. Felizmente para os pobres iranianos, oprimidos pela simples falta de opções legais de lazer, antes de morrer Khomeini decidiu voltar atrás em sua decisão e autorizou a volta dos peões, torres e cavalos. No parque, o que vejo são mesinhas nas sombras, velhos amigos e colegas de escola relaxando após o longo dia, alguns debruçados em livros, outros quebrando a cabeça nos dilemas dos gambitos e nos xeque-mates. Desviando o olhar dos jogadores, encontro um lado insólito do parque: perto de onde ficam os brinquedos para as crianças, também há brinquedos para adultos. São máquinas, pintadas de amarelo e vermelho, que as pessoas usam para se exercitar. Não são como as que vemos em parques do Brasil, não há argolas ou barras para exercitar os bíceps. Os "brinquedos" são bem mais complexos, se assemelham mesmo aos aparelhos de ginástica das academias que conhecemos. Em um deles, você sobe e simula os passos de um esquiador, segurando duas barras verticais ligadas a pequenas plataformas onde ficam os pés. Em outra, você se senta, agarra duas barras e as puxa de encontro ao peito, o que faz levantar, por meio de um mecanismo simples, o seu próprio peso. O estranho disso tudo nem sei se são os próprios aparelhos num país em que as academias, se as há, devem estar escondidas no norte de Teerã. O insólito é ver uma mulher, com seu longo vestido e seu véu, botando prá quebrar e suando suas calorias sem o menor pudor, orgulhosamente balançando seus panos em público. A casa de chá é ao lado. Você entra e se depara com um salão com dezenas de plataformas de madeira no formato de camas, cobertas com tapetes. Os almofadões amortecem a cabeça e, depois, o garçom tenta se comunicar. Pedi o chá e o narguilé. Por aqui, o cachimbo d'água é conhecido por qalian e não é menos popular do que em outros países muçulmanos. Sua fumaça não se soma à da poluição inalada após um dia inteiro batendo perna. Pelo contrário, o vapor sobe e parece que limpa suas narinas, relaxa. Solto as baforadas falando vivas a Teerã, à cidade mais esfumaçada onde já estive. Fumaça do bem do qalian, fumaça do mal dos Paikans e das motos. O parque fica perto do bazar, talvez o ponto mais conhecido deste cataclisma urbano. O bazar, o mercado municipal, é uma monstruosidade imensa: uma cidade dentro da cidade, ainda mais caótica do que seu hospedeiro. Esquivando-me das motocicletas que tomam a calçada, entro em uma longa ruela com lojas vendendo os mais finos artigos chineses. Nada de novo. A rua, no início bem iluminada, avança até as tripas do mercado, regiões escuras e tenebrosas como o inferno, onde sobrevivem vendedores de matérias primas - espumas, couros, plásticos - e de tapetes. É fácil ignorar esses objetos coloridos e de complexas estampas que são os verdadeiros responsáveis pelo pouco que conhecemos da cultura persa no resto do mundo. Os mais antigos tapetes persas, feitos de lã ou seda, que existem datam do século XVI. Aqui, eles sempre tiveram uma função prática: sustentar os joelhos dos fiéis nas mesquitas e, o que é ainda mais ancestral, permitir que as pessoas se sentassem nas areias escaldantes do deserto. Hoje, são a principal commodity dos mercados: os vendedores apostam na venda de apenas um deles para ganhar o dia, de tão caros que são. Mas, mesmo assim, todo lar persa tem um, é mais essencial que um eletrodoméstico. É nos tapetes que os iranianos se sentem à vontade, se encontram. Em casa, nos cafés, mesmo em reuniões de negócios. Olhando para o teto no bazar, as telhas plásticas estão velhas e cobrem fios elétricos embaraçados, prestes a explodir, e paredes sujas de fuligem. Cheiro de poeira e de escapamento das motos, que também aqui dentro me perseguem. Tudo é mal iluminado e, se estivesse chovendo, não haveria quem pudesse evitar as goteiras. Nas penumbras fartas de mercadorias opacas, meu olhar se espanta. Do nada, surgem mesquitas, várias mesquitas. Uma delas sorri especialmente para mim de um pátio ao ar livre, com uma grande cúpula amarelada e azul. A cúpula é linda, mas a mesquita é desconhecida: pergunto aos transeuntes seu nome e não a identifico no meu mapa. Se a questão é identidade, porém, em poucos segundos a construção se torna minha velha conhecida. A cúpula reflete o sol do fim da tarde, me forçando a fechar um pouco os olhos, filtrando a intensidade dos raios dourados. Dentro, dois pequenos salões cujo brilho quase fazem, por alguns segundos, com que eu tenha que caminhar de olhos fechados. O brilho se explica: o teto deles é completamente revestido de espelhos, apontando em várias direções, cintilando infinitamente a luz de algumas lâmpadas espalhadas, umas verdes, outras brancas. Os espelhos parecem no início estarem construídos de forma caótica, mas logo os olhos pairam sobre eles e uma caleidoscópica ordem se revela. Olho para a parede ao lado: meu reflexo à direita, à esquerda, no centro do teto. O salão nem é alto. Nem deve ter sido difícil fazer algo assim, colar os espelhos. Mas a sensação que causam é indescritível, é como se eu tivesse entrado dentro de um diamante esverdeado. Ao meu redor, finalmente descubro os fiéis, alheios à minha prensença. Uns rezam, como este lugar os instrui a fazer. Outros, dormem, outros, falam ao celular. Para meus vizinhos, esta é apenas uma mesquita qualquer. Foi daí a cinco minutos que coloquei de volta meus sapatos, deixei a mesquita desconhecida e fui visitar o famoso palácio de Teerã. Meus pés pedem arrego. No Palácio Golestan, pertinho do bazar, vou bem devagar, quase parando. Estou visitando o que certamente é a maior jóia arquitetônica da dinastia Qajar, construído a partir do século XVI. Os reis qajares, sucessivamente, fizeram o possível para tentar reproduzir no Golestan a grandiosidade que viram nos palácios franceses em suas viagens, mas com um toque local. A influência européia fica clara nas fachadas e nos interiores, rebuscados, menos geométricos e abstratos do que em palácios e mesquitas do passado persa. Era aqui que os últimos xás realizavam audiências públicas. Também foi aqui que ocorreram as últimas coroações - inclusive, em 1941, a de Reza Pahlavi, afastado pela Revolução de Khomeini. Os mosaicos têm figuras definidas, animais, homens. As salas do palácio têm colunas e esculturas que não dizem quase nada do passado reluzente desta terra. Tudo é muito estranho, até bizarro. É como se o responsável por conceber estas salas e estes prédios estivesse misturando dois estilos que não se misturam, água e azeite. Tudo parece forçado, parece uma tentativa de provar alguma coisa, talvez provar para os reis europeus que o xá da Pérsia também era refinado. Em uma das salas, a resposta dos europeus: lá estão acumulados presentes dados aos xás pelos monarcas do Velho Continente, obras de arte, quadros, que meu guia diz serem "medíocres". Presentes medíocres para um rei de uma terra distante que não poderia compreender a verdadeira, erudita arte européia. Assim pensavam os monarcas que, por interesse político, se aproximavam do xá. Mas também há beleza. Uma beleza do excesso, numa lógica barroca. O palácio, para muitos, é um dos maiores lembretes dos anos do xá Pahlavi, quando o Irã estava mergulhado num pesadelo de perseguição política, censura e torturas que só deu mais força à elite religiosa. Um paradoxo, já que Reza Pahlavi queria transformar o Irã num país ocidentalizado, chegou a proibir as mulheres de usar véu e prometia, à base dos bilhões adquiridos com o petróleo no auge da crise da década de 70, transformar o Irã na quinta maior potência do planeta "em uma geração". Isolado em seu palácio, foi presa fácil das elites e de empresários estrangeiros interessados apenas em dinheiro. Ryszard Kapuscinski faz uma excelente descrição da incompentência do xá, forçado ao exílio em 16 de janeiro de 1979, e das raízes da revolução iraniana: O xá deu às pessoas a opção de escolher entre a Savak (polícia política) e os mulás. E elas escolheram os mulás (...) À medida que a ditadura aperta seus parafusos e mais silêncio toma as ruas e os locais de trabalho, mais e mais a mesquita se enche de gente e de vozes. Nem todos que lá vão são muçulmanos fervorosos, nem todos são atraídos por uma repentina febre de devoção - eles vêm porque querem respirar, querem se sentir como pessoas. Até a Savak tinha limitada liberdade de ação nos limites de uma mesquita. Ryszard Kapuscinski em Shah of Shahs A revolução toma o poder e instala um sistema de governo único no mundo, em que o "Conselho de Guardiões", extremamente conservador, e o Aiatolá, líder supremo, são as reais fontes de poder, com direito de veto. O povo vota, mas o presidente tem força limitada, especialmente se for reformista. Na época da opressão insana dos xás, a revolução era uma fonte de esperança e as mudanças foram bem-vindas. O problema é que os ideais da revolução tendem a ser esquecidos pelos jovens. Nesse contexto, um presidente conservador, carismático, que confronta o Ocidente e inflama as multidões é o remédio ideal para o país salvar sua revolução. Muitos não têm idéia da alienação a que estão sendo submetidos nos meios de comunicação. Jornais de oposição sofrem ondas de perseguição, jornalistas são presos. Tudo em nome de Deus. A máquina de pesadelos do xá pode ter acabado, mas sua sombra, na forma da repressão, é mantida para garantir a força da chama revolucionária. No caminho de volta para o hotel, a pé, me espanto com a inocência capitalista desta cidade. Essa impressão vem da ausência das grandes lojas que infestam as grandes cidades que estamos acostumados a ver. Obviamente não há os grandes nomes americanos: McDonald's, por exemplo. Engraçado como sinto um certo conforto ao encontrar uma região no mundo assim... onde ainda é possível achar outras colas além da Pepsi e da Coca-cola (aqui, a mais poupar parece ser a Zan-Zan Cola, mas também há a Parsa Cola, ambas razoáveis...), onde ainda não há imensos hipermercados em que é só bobear e você se perde. Sem essas grandes marcas, parece haver muito mais lojas, muito mais chance para pequenos empresários que não têm que se preocupar com o dumping desses grandes supermercados para sobreviver. Muito mais chance desses pequenos comerciantes desenvolverem negócios criativos, adaptados aos costumes locais. Por incrível que pareça, nas lojas de roupas até parece que há mais variedades de cores à venda nas camisas e calças. O que leva a outra pergunta: qual mulher neste país vestiria uma camisa laranja bem justa ou uma calça verde? Estão à venda, acabei de ver. Amanhã, vou dar adeus a Teerã, uma cidade que mal conheci. Uma cidade grande demais. Meio que te ofusca e te sufoca, e não estou falando apenas do monóxido de carbono. Sabe quando você tem a sensação de que andou, andou e não viu nada? Ainda assim, com toda a intimidação de seu gigantismo, é uma cidade que me pede para voltar. Para um bate-papo mais intimista, com tempo para refletir sobre idiossincrasias esfumaçadas.
Arcano9 |
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