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Quinta-feira, 13/4/2006
Grande Sertão: Veredas (uma aventura)
Paulo Polzonoff Jr

Há muito tempo eu venho querendo escrever sobre a experiência de ter lido Grande Sertão: Veredas. Mas eu nunca tinha um motivo suficientemente bom para isso. Agora li que o romance de Guimarães Rosa completa 50 anos. Não é, ainda, motivo o suficiente, mas mesmo assim me animei. E tome texto!

Meu contato com Guimarães Rosa nasceu precário, depois conseguiu piorar um pouco mais. Na verdade, é um pequeno milagre que eu tenha lido - e gostado de - Grande Sertão: Veredas. Tudo, absolutamente tudo, conspirava para que eu jamais chegasse a ler o romance que não é só uma obra-prima venerada por acadêmicos; Grande Sertão: Veredas é um destes livros que mudam a vida da gente. Pelo menos a minha ele mudou.

Mas convém descrever os pormenores desta relação conturbada, até para mostrar como o ensino de literatura no país é precário. Eu não estudei em colégio público. Tive, teoricamente, uma educação de elite, com professores teoricamente bem preparados. A teoria, como se sabe, é muito diferente da prática. Prova disso foi uma tola professora de segundo grau que, durante as aulas de literatura, se punha a ler em voz alta trechos de Grande Sertão: Veredas. Para o tédio e sono dos alunos, entre eles, eu.

Talvez eu pinte um quadro infernal, graças à minha imaginação. Fato é que me lembro destas aulas como uma tortura. Eu estudava pela manhã - e as manhãs em Curitiba são frias. Some-se a isso o fato de eu não ser, de modo algum, uma pessoa matutina. Impossível prestar um mínimo de atenção na leitura da professora que, além do mais, não tinha propósito pedagógico algum. Ou ela realmente achava que algum daqueles adolescentes ali se apaixonaria por Guimarães Rosa depois daquele suplício?

Tenho cá para mim que, passados mais de dez anos, fui o único daquela turma a me aventurar pelas páginas de Grande Sertão: Veredas. E isso depois de muito desestímulo, o que mostra que sou persistente ou teimoso - dá no mesmo. Sim, porque logo depois da sonolenta leitura de trechos pela professora mais do que tola, fui obrigado a ler Primeiras Estórias para o vestibular daquele ano.

A linguagem cifrada de Rosa me pareceu intransponível. Os contos não me interessaram. Eu não conseguia perceber beleza alguma naquilo. Para entender tanta repulsa, talvez seja necessário contextualizar: por esta época eu estava interessado nos romances de aventura e nos amores sofridos do romantismo. Não havia espaço para modernismo algum. Muito menos para experiências de linguagem. Li o livro, pois, por obrigação, e, naquele momento, tudo o que apreendi dele foi por meio de um grande resumo feito por um outro professor de literatura.

Neste momento você se pergunta: por que fui ler Guimarães Rosa? A resposta é simples: pretensão. Logo depois de passar no vestibular, entrei no que chamo de "fase pretensiosa". Meu objetivo, nada modesto, era ler as principais obras literárias, não importava quão repugnantes elas parecessem. Foi deste modo que li Camus e muito Sartre, toda a obra de Clarice Lispector, Machado de Assis, evidentemente, Thomas Mann, me aventurei por Joyce (que não consegui atravessar) - e Guimarães Rosa.

Para tanto, me utilizei do depoimento de um professor, aquele mesmo do resumão de Primeiras Estórias. Contou-me o professor que também ele teve dificuldades para ler Grande Sertão: Veredas. E não há como não ter. O romance contém aquela (deliciosa) linguagem cifrada de Rosa, numa história sem pausas. Para alguém como eu, que nasceu na época da total fragmentação narrativa, ler Grande Sertão: Veredas era como construir uma nave interestelar com um chicletes velho e um punhado de clipes. E o pior é que, no meu caso, deu muito certo.

Dizia o professor que também ele teve dificuldades para ler Grande Sertão: Veredas. "As primeiras 50 páginas são praticamente impossíveis, mas depois o romance flui que é uma beleza", disse. Quando peguei o livro na estante, tive isso em mente.

Comecei a ler Grande Sertão: Veredas, na praia, no final do ano de 1999. Aquele Ano Novo era especial, porque cercado de expectativas místicas, e eu queria estar lendo algo especial quando a transição acontecesse. Sei que é uma motivação tola, mas ainda assim é uma motivação. Foi na rede, pois, que li as primeiras 50 páginas do romance. Penei. Demorei uns bons cinco dias para passar por elas. Aos poucos fui me acostumando com o linguajar. As páginas começaram realmente a fluir. E, como num passe de mágica, o romance se abriu para mim.

A imagem é meio tola, bem sei, mas ela é exata. O romance se abriu para mim. De um momento para outro foi como se aquela linguagem impenetrável se revelasse. Há muitas teorias sobre isso. Alguns dizem que Guimarães Rosa trabalha sobre fonemas que, geneticamente, somos capazes de apreender. Outros dizem que inventamos os significados das palavras de acordo com nossa imaginação. Há ainda os que falam de inconsciente coletivo. Não sei se há mesmo uma explicação ou se tudo é bobagem (tendo pela segunda opção), mas o fato é que o livro realmente pareceu muito fácil depois de um tempo.

Fácil, ma non troppo. Porque nem toda a inventividade do mundo é capaz de vencer a vulgaridade. E foi exatamente isso que Grande Sertão: Veredas teve de fazer naquele Ano Novo de 1999-2000. Já contei esta história, mas não custa repetir porque ela é interessante.

Eu lia o livro confortavelmente quando chegaram os bárbaros. Em outras palavras, parentes que vinham passar o Ano Novo em nossa casa de praia. Estava concentrado na rede, quando eles começaram a escutar música sertaneja num volume muito, mas muito alto mesmo. Pedi uma, duas, dez vezes para abaixar o som. Nada. Os jacus não conhecem as leis básicas da civilização. Para resumir o desfecho da tragicomédia: fui até um dos carros, peguei o CD e joguei longe. Mais ou menos às 23 horas do dia 31 de dezembro de 1999, um comboio de imbecis saía de minha casa para passar o réveillon na estrada, de volta para o lugar de onde jamais deveriam ter saído: a capiaulândia.

Dispensável dizer que nunca mais tornaram a falar comigo. Não sinto a menor falta.

Depois deste incidente, continuei a ler o romance por alguns dias. Até que tudo travou novamente. Não por culpa do romance. Aliás, não sei por quê. A história de Grande Sertão: Veredas é bastante veloz. Já disse - e os puristas torcerão o nariz para isso - que o livro é um grande faroeste. Uma aventura divertida e, para usar uma palavra da moda, eletrizante. Mas, em algum momento, acho que perdi a conexão com a língua de Rosa. Encostei o livro e ele ficou parado por três longos meses.

Quando retomei a leitura, fui tomado por um êxtase. Guimarães Rosa é dono de uma prosa não só saborosíssima, como também elevada. Reduzir o livro a uma aventura no sertão é recurso meu para incentivar os incautos, mas a verdade é que o livro é muito mais do que isso. E é tanto que nem sei dizer. Fico aqui procurando um modo de descrever meu arrebatamento, sem sucesso. O livro é simplesmente genial - em que se pese toda a infelicidade do termo.

Claro que não é todo mundo que se sente envolvido pela mágica de Guimarães Rosa. Poucos são aqueles, aliás, que se interessam pela aventura de Riobaldo e Diadorim. Acrescente aí o fato de o livro ser motivo de várias especulações acadêmicas, o que afasta um bocado o leitor interessado. Colocado numa espécie de pedestal, o livro é muito comentado, mas pouco lido. Infelizmente.

Minha impressão quanto à maestria de Grande Sertão: Veredas não se dissolveu nestes anos todos. Pelo contrário, tenho a impressão de que o livro tem ganhado importância com o passar do tempo. As lembranças que tenho dele, as cenas de imensa poesia, a linguagem extremamente divertida, tudo isso resulta numa admiração que, embora tenha nascido da pretensão e de certo pedantismo, nada tem de pretensiosa e pedante. Grande Sertão: Veredas é um romance que se comunica perfeitamente com aqueles que estão dispostos a enfrentá-lo, não como objeto de estudo (longe disso), mas como obra de arte.

Muita gente não concorda. Não entro neste tipo de celeuma. Há quem ache que Rosa floreia demais uma narrativa que poderia ser direta e nem por isso perderia em beleza. Há quem coloque o livro no "balaio de gato" do romance regionalista e, assim, o reduza a uma história de cangaço. Há ainda quem tenta criar uma rivalidade entre Machado de Assis e Guimarães Rosa, ambos se digladiando pelo posto de "melhor escritor brasileiro de todos os tempos".

A quem interessar possa, eu acho isso tudo uma grande bobagem, mas, se me perguntarem numa mesa de bar, não hesito em dizer que Grande Sertão: Veredas, o maior romance brasileiro, não é regionalista (passa longe) e que, se não fosse escrito do modo como foi, certamente não perderia em força, mas perderia, sim, em beleza e inventividade.

Mas aqui já me alongo para muito além de minhas intenções. Queria apenas dar o testemunho de uma leitura que, apesar das dificuldades, recomendo com entusiasmo. Grande Sertão: Veredas é uma daquelas obras reveladoras. Simples assim.

Nota do Editor
Leia também "Riobaldo".

Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 13/4/2006

 

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