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Segunda-feira, 3/4/2006 A perfeição de Spike Lee Marcelo Miranda 1. Filmes de assalto não são novidade no cinema. Na verdade, eles existem desde os primórdios, inclusive do faroeste, com O Grande Roubo do Trem (1902). Não admira, então, que esse subgênero esteja tão desgastado. Apesar de ter nos proporcionado obras-primas absolutas (com Um Dia de Cão saindo na frente), não é de hoje que os assaltos na tela grande não têm mais tanta força. Claro, há exceções aqui e ali, mas, no geral, o subgênero agoniza. Talvez devêssemos dizer agonizava. Porque o improvável Spike Lee (de Faça a Coisa Certa, Malcom X e A Última Noite) acaba de dar fôlego renovado aos assaltos cinematográficos. O que há de atraente em O Plano Perfeito, mais recente filme do cineasta americano, em cartaz no Brasil, não é necessariamente a sua história, que, apesar de intensa, por si só não causaria impacto. O que provoca a inquietação do espectador e a subida da produção do patamar de "bom entretenimento" para "grande filme" é a forma (e o que mais seria?) como Lee desenvolve sua trama. Basicamente, o segredo da perfeição de O Plano Perfeito (Inside Man, no original) é a visão extremamente particular impressa na película. É o primeiro trabalho de Lee assumidamente comercial e com larga distribuição. E estão ali, naquelas duas horas, marcas indeléveis de seu cinema, travestidas numa proposta de chamar atenção do público através da linguagem clássica, de lances surpreendentes e elenco famoso. Porém, Spike Lee impregna seu assalto com elementos que o fazem o controvertido e significativo diretor que ele é. A característica mais presente em O Plano Perfeito é o choque racial decorrente do crime narrado no filme. Qualquer diálogo de dois minutos envolvendo raças e credos no filme é imensamente mais carregado de complexidade, intensidade e relevância do que toda a metragem do engodo chamado Crash - No Limite, de Paul Haggis e ganhador do Oscar 2006 de melhor filme. Lee faz com categoria, classe e conhecimento de causa, com poucos personagens em cena, o que Haggis cospe no seu roteiro envolvendo dezenas de pessoas. O banco onde acontece a ação de O Plano Perfeito é um micro-universo de variações humanas, em cores de pele, crenças religiosas e costumes. Um caldeirão prestes a explodir, algo que o filme não chega a desenvolver diretamente, mas o qual Lee trata com sutileza ao usar o assalto como símbolo dessa explosão e, claro, criar o ambiente claustrofóbico e sem saída no interior do local - processo que lembra Faça a Coisa Certa, um dos grandes exemplares de Spike Lee, em que o calor insuportável de uma Nova York fervilhante tornava tudo mais difícil de se resolver. Também engrandece O Plano Perfeito o contraponto que o diretor faz entre os policiais e os bandidos: os primeiros são tidos como abobalhados, engambelados pelo vilão (Clive Owen) por meio de gravações telefônicas, jogos de adivinhação, aparente morte de reféns e negociações infrutíferas; já os criminosos são apresentados como mestres na arte do assalto, nem tanto pelo plano mirabolante arquitetado, mas sim pela frieza e segurança com que o fazem. Paralelo a isso, Spike Lee insere outra de suas temáticas: o abuso de poder, ponto em que ele entra na esfera política. O presidente do banco (Christopher Plummer) se envolve no crime por meio de uma mulher influente (Jodie Foster) na tentativa de recuperar algo de valor escondido no lugar. Ele mobiliza o prefeito da cidade para convencer o policial responsável pela negociação (Denzel Washington) a permitir a entrada da mulher no banco assaltado e cheio de reféns. Ela consegue, e ela mesma será a chave para a resolução do conflito. Se o chefão do banco achava que estaria se salvando, a balança será invertida a partir do instante em que o ladrão percebe a força daquilo em que ele se envolveu. O poder que antes era do empresário passa a ser do subalterno, da classe mais desfavorecida - inversão também típica do cinema de Lee, em que nem sempre é o branco que discrimina o negro, nem o cristão que faz joça do judeu. As relações de poder estão no centro de O Plano Perfeito (não apenas na trama do banqueiro, mas nos interrogatórios na sede policial), tornando o filme ainda mais indispensável e uma quase-anomalia entre os filmes de assalto recentes - em que as "sacadas" de roteiro sobre como se dão os crimes (vide Onze Homens e Um Segredo, Armadilha, Thomas Crown - A Arte do Crime e Uma Saída de Mestre, entre vários e vários outros) sempre ficavam acima de qualquer outra coisa. Não que inexista engenhosidade no longa de Spike Lee. Há, e muita. Porém, ele utiliza essa engenhosidade e uma estrutura de roteiro batida e cansada não para dar rasteiras no espectador e fazê-lo sair da sala de cinema pensando no quanto os planos armados na tela eram fantasticamente inteligentes e infalíveis, mas sim para inserir questionamentos muito pessoais e bastante reveladores acerca dos conflitos do homem urbano moderno em meio ao caos social dos novos tempos. Não é pouca coisa. E não é pra qualquer um. 2. A coluna passada sobre filmes extremos e filmes extremistas teve mais audiência do que eu podia esperar. Acho que o assunto pode ter, sim, algum interesse em ser discutido. E houve alguns comentários altamente pertinentes, que respondiam à pergunta lançada ao final do texto - como dois filmes com pontos de partida semelhantes, como Sobre Meninos e Lobos e Desejo de Matar, conseguiam ser tão diferentes e opostos? O leitor Marcelo Souza matou a charada de forma sucinta, e é reproduzindo um trecho do comentário dele que eu encerro o assunto, ao menos por ora: "[nos extremistas] há o maniqueímo expresso. De um lado, heróis sofridos e, de outro, vilões odiosos; e, no outro caso [nos extremos ou não-extremistas], personagens de caráter indefinido, que buscam, por vezes, a redenção e, na maioria da vezes, jamais irão encontrar". 3. Já saiu há algum tempo, mas o registro é extremamente válido. Em 1986, a jornalista Ana Maria Bahiana foi responsável por uma pequena revolução na imprensa cultural brasileira. Criou, em O Globo, o Rio Fanzine, coluna sobre manifestações ditas "alternativas" em praticamente todas as vertentes - da música ao cinema, das artes às baladas noturnas. Fez história. O Rio Fanzine foi se desenvolvendo ao longo dos anos, ganhou e perdeu espaço, foi assumido por novos responsáveis, enfrentou dificuldades e nunca deixou de captar o que se fazia de mais notável no underground, em especial o carioca, mas também de vários outros pontos do país e fora dele. Um pouco dessa história pode ser constatada no indispensável Rio Fanzine: 18 Anos de Cultura Alternativa (2004, Record, 271 páginas). É uma compilação de dezenas de artigos da coluna, em que se sente a paixão dos que ali escreviam e o faro para descobrir o que havia de relevante na cultura fora do grande circuito. Como comentado no prefácio, de autoria dos organizadores Carlos Albuquerque e Tom Leão, o Rio Fanzine foi responsável, por exemplo, pela "descoberta" do Planet Hemp e do Skank e adiantou a ascensão e influência da música eletrônica. O livro reúne textos e algumas imagens separados por anos, de 1986 até 2004. Não bastasse a oportunidade de ter esses registros, conhecer o livro é testemunhar a transformação do alternativo em artigo de atenção primária. Para ir além Marcelo Miranda |
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