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Quinta-feira, 4/5/2006 Sombras Persas (V) Arcano9
A montanha - esculpida, escavada, moldada pelo homem e pelo sol fortíssimo - se esquivou do tempo e foge dos meus olhos, que teimam em se fechar por causa da luz, da secura, da poeira. Nos poucos momentos em que os tenho abertos, as tumbas me atiçam, me seduzem, riem de mim. Afinal, quem sou eu? Nunca fui rei, talvez nem da minha casa; nunca fui arqueólogo, nem historiador, nem logo nem conhecimento de minha própria ignorância eu tenho. Sou, por isso mesmo, um ignorante completo, e há quem diga que a satisfação com a vida tem a ver com a falta de conhecimento sobre seus meandros. E este ignorante completo nem vai conseguir olhar dentro das tumbas dos reis Dario I, Artaxerxes I, Xerxes I e Dario II, que estão altas no paredão de pedra à minha frente, sem escadas de acesso. Embaixo, à minha altura, estão baixos-relevos dos sassanidas, uma dinastia que ousou se declarar herdeira do grande império persa aniquilado por Alexandre antes de Cristo. Esta é Nasqt-e Rostam, um mistério de pedra que me fez novamente um fã devoto de Indiana Jones, como naqueles tempos de pré-adolescente em que eu estava convicto de que iria me tornar um violador de tumbas ancestrais em nome da ciência e da aventura. Meu sonho era adentrar fendas em templos milenares e desvendar uma incrível cadeia de túneis subterrâneos levando a salas recheadas de cobras e tarântulas, que seriam guardiões de alçapões por meio dos quais seria possível acessar câmaras ocultas com tesouros de valor incalculável. Hoje avanço pela obscura cadeia de túneis de minha quarta década de vida, fui carcomido pela realidade, mas nunca deixo de ficar embasbacado toda vez que leio sobre arqueólogos descobrindo novos tesouros. É incrível que ainda existam coisas para se descobrir. Nasqt-e Rostam faz parte do passeio que todo turista faz obrigatoriamente ao viajar para Shiraz, o passeio que inclui a majestosa Persépolis, a mais bem preservada capital da dinastia persa arquemenida (de Dario e Xerxes), e também os três baixos-relevos de outro sítio arqueológico das redondezas, chamado Nasqt-e Rajab. Persépolis, construída a partir de 512 a.C., é o maior deles e certamente, para a maioria dos turistas que visita o Irã, o ápice da viagem. No seu auge, entre 550 e 330 a.C., a primeira dinastia do império persa tinha três capitais: Shush, que fica hoje no Irã perto da fronteira com o Iraque; Ecbatana, a antiga capital do povo medo, onde fica hoje a cidade de Hamadan; e Persépolis, tratada pelos reis como uma capital cerimonial e religiosa. Durante esses anos, o império persa dominou uma imensa região que ia do atual Uzbequistão ao Golfo Pérsico, da África ao Afeganistão. Persépolis, com seus 125 mil metros quadrados, foi construída durante um período de 150 anos em uma região de montanhas imponentes, e desde muito longe essas montanhas proporcionam ao visitante um perfeito e intimidador enquadramento para os seus magníficos palácios, visitados todos os anos, como parte das celebrações de Ano Novo, por delegações dos povos subjugados pelos persas. Essa era provavelmente sua função principal: ser a sede do império nesses momentos em que homenagens eram pagos por medos, babilônicos, sogdianos, báctrios. O fato de que uma cidade tão magnífica poucas vezes foi citada em documentos produzidos por historiadores da antiguidade reforça a tese de que a cidade e suas muralhas não tinha muita importância estratégica, e sim simbólica. Também de longe, as colunas reconstruídas de um dos palácios do complexo se anunciam. Pelo meus cálculos, essas colunas devem ter dez metros de altura. São tão altas que fica difícil acreditar que um dia elas sustentaram um teto, parece que foram feitas apenas para sinalizar que, onde elas estão, algo muito importante ocorreu. Inacreditáveis também são os blocos de pedra que formam a muralha a partir de onde escadas levam ao interior do complexo. Os blocos são tão imensos que não dá para imaginar que foram um dia transportados de algum outro lugar. Parece que lá mesmo foram esculpidos e lá deixados. Ao atacar as cidades-estado gregas por volta da 500 a.C., os persas, entre eles Xerxes, deixariam um gosto amargo na boca dos antepassados do jovem conquistador Alexandre. Mesmo a recente e desastrada biografia cinematográfica de Oliver Stone deixa claro que os gregos consideravam os persas uns selvagens e tinham fixação em dizimar essa selvageria, por vingança ou simplesmente por cega cobiça e inveja. As duas batalhas entre Alexandre e Dario III, em Issus (333 a.C) e Gaugamela (331 a.C), certamente estão entre as mais memoráveis da Idade Antiga, testemunhando o gênio estrategista do jovem macedônico. A entrada de Alexandre em Persépolis foi registrada por um dos biógrafos originais do conquistador, Plutarco, que deixou clara a admiração que mesmo Alexandre sentia por um dos grandes impérios da história humana: "Fala-se que em Persépolis, ele (Alexandre) encontrou tanto ouro quanto tinha encontrado em Shush, e que foram necessários 2 mil pares de mulas e 500 camelos para levar os móveis e outros tesouros que lá foram encontrados. Foi em Persépolis que Alexandre viu uma estátua gigante de Xerxes. Ela havia sido derrubada de seu pedestal e deixada de qualquer jeito no chão por um grupo de soldados quando eles estavam forçando a entrada no palácio, e Alexandre parou e falou com a estátua como se ela estivesse viva: 'Devo passar e deixar você aí derrubada por causa de sua campanha contra a Grécia, ou devo erguê-la novamente por causa de sua grandiosidade e virtudes em outros respeitos?' (...) Era então inverno, e ele ficou quatro meses em Persépolis para dar tempo para que seus soldados descansassem." Plutarco em Alexandre Um dos aspectos mais fantásticos de Persépolis são seus baixo-relevos. A escadaria Apadana, a mais bem preservada do complexo, levava ao Palácio de mesmo nome e contém uma coleção de figuras de perfil, cada uma delas representando 23 povos estrangeiros que pagavam tributos aos persas, cada um deles com suas vestimentas típicas. A figura central da escada é um conhecido símbolo do Zoroastrismo, a religião do império arquemenida (um homem de perfil com asas). É impressionante ver como as figuras estão bem preservadas, e ainda mais impressionante é pensar que permanecem no mesmo lugar, sem terem sido removidas para algum museu sem graça, há cerca de 2,5 mil anos. Vendo todo o complexo, com suas estátuas e colunas, é difícil acreditar que Persépolis permaneceu enterrada na areia e na poeira por séculos, até ser redescoberta durante escavações na década de 1930. Mas, estudada e reestudada por arquéologos e curiosos, varrida por hordas de turistas ávidos por fotos, a cidade até hoje também mantém um grande mistério sem solução. Se Alexandre aparentemente tinha respeito e admiração pelos persas e não parecia inclinado a acabar com a cidade, como aponta Plutarco, por que ela acabou sendo destruída por ele? Segundo o próprio historiador, o incêndio que deixou em ruínas a grande capital cerimonial dos arquemenidas teria sido idéia de uma mulher, Thais, na época amante de um dos generais de Alexandre. Em uma festa em Persépolis, ela teria estimulado o conquistador macedônico a atear fogo nos palácios como vingança pelo fato de os persas terem atacado Atenas durante sua fracassada campanha na Grécia. O incêndio que se seguiu pode ter sido um reflexo de um porre e de um ato impulsivo nascido do desejo de vingança de Alexandre, mas outros historiadores afirmam que se tratou de uma ação calculada do macedônico, para mostrar que, apesar de estar se envolvendo com "selvagens" como os persas, ele ainda era fiel a suas raízes e a seu povo, e que ele não estava planejando ser clemente com quem tivesse causado sofrimento aos gregos. Ainda assim, segundo Plutarco, "é consenso que Alexandre rapidamente se arrependeu e deu ordens para que o fogo fosse apagado". Anos depois, em sua campanha no atual Uzbequistão, Alexandre consolidaria sua metamorfose em um rei "selvagem" ao se casar com uma local, Roxane, provocando a ira de seus compatriotas. O passeio para Persépolis, Nashq-e Rostam e Nashqt-e Rajab começa com a aventura de se encontrar um taxista honesto que o leve a Persépolis. É um passeio de umas seis horas, passando pelos três locais com tempo para vê-los direito. Dá para chegar a Persépolis de ônibus, mas logo desisti da idéia, pensando em todo o estresse em ter que me explicar em persa sobre meu destino. O problema principal em relação ao táxi é que sou um viajante solitário, que não conhecera, até então, nenhum outro viajante que se disponha a dividir o valor da corrida. Depois de procurar em vão em vários hotéis por potenciais companheiros de jornada, acabei tendo que aceitar a oferta de um taxista para me levar por uma pequena fortuna. Encurtando a história, acabei me demorando mais do que o motorista esperava em Nashqt-e Rostam e, ao me entregar de volta ao hotel, o sujeito disse que eu lhe devia 20 mil rials acima do que tínhamos combinado anteriormente. Disse a ele que não tínhamos acertado nenhuma "taxa de atraso" antes de iniciarmos a viagem. Bate-boca, cara amarrada, ameaças veladas. Deixei o veículo sem enfiar novamente a mão no bolso e lembrando que são momentos assim que estragam viagens. Até Persépolis, dá meia hora de carro, cortando um panorama predominantemente ocre de planícies e colinas, com a ocasional plantação verde e os dezenas de vendedores de romãs. Em Teerã e em Shiraz, nas ruas, nos bazares e nas estradas, nas vilas que encontrei na estrada, o que não faltam são pessoas vendendo romãs. Romãs a preço de banana, romãs de baciada. Nunca pensei que iria associar a fruta ao Irã, mas parece que por acaso estou por aqui na época da safra da fruta e, depois de negar três vezes (como reza a tradição iraniana conhecida como Ta'aruf), acabei aceitando uma do meu então amigo taxista. Degustei dois grãozinhos vermelhos suculentos e guardei o resto da fruta na minha mochila. Vendo Persépolis, você não consegue evitar reflexões a respeito do que significa um país ter um passado glorioso, de séculos e séculos. Um passado que alimenta um certo orgulho inconsciente, um orgulho que vem à tona em momentos muito particulares e que, no Brasil, não existe. Talvez seja esse orgulho que os americanos insistem em ignorar no Iraque, berço de civilizações tão ou mais antigas quanto a persa, a dos babilônicos, a dos assírios. Como pode um invasor ser tão inocente a ponto de acreditar que seu próprio modelo de democracia pode ser aplicado sem problemas em um país que tem milênios de história, cultura e divisões étnico-religiosas a ponderar em sua própria equação de governo? Esse orgulho só poderia aumentar com uma intervenção militar, só pode provocar reações como as do "louco" presidente iraniano. "As pessoas não gostam muito dele por aqui", disse meu taxista sobre o presidente Ahmadinejad quando expliquei a ele, já voltando a Shiraz, como o líder iraniano está sendo visto na Grã-Bretanha. Pergunto a ele se Ahmadinejad teria o apoio maciço do eleitorado em Teerã, mas não fora da megalópole que ele governou como prefeito, e se esse apoio não teria sido suficiente para elegê-lo. Ele acha que não. "Ele tem dinheiro, isso sim", afirma. "Dinheiro vindo da Síria, da Líbia, da Arábia." Curiosa teoria. Segundo a visão do meu amigo taxista, esses países todos teriam interesse em ter na presidência do Irã um líder bem contrário aos Estados Unidos. E quanto aos próximos passos dos americanos, agora que o Iraque foi subjulgado, eles vão invadir o Irã se Ahmadinejad não parar com seus comentários sobre Israel? "Não", responde ele, de forma ainda mais enfática e mais uma vez me deixando perplexo. "O Irã é um país grande e poderoso. Mais forte que o Iraque ou o Afeganistão, e vai resistir mais a um ataque." Ou seja, os americanos devem manter distância do Irã, porque vão encontrar um inimigo verdadeiramente feroz. Orgulho iraniano? Vã esperança? Shiraz se aproxima. Deixo meus pensamentos para quando Mahmoud Ahmadinejad disser que são os Estados Unidos, e não Israel, que devem ser eliminados da face da terra. Só espero que, em caso de ataque, os americanos não bombardeiem Persépolis e, depois, sobre as ruínas, construam um Wal-Mart.
Arcano9 |
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