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Segunda-feira, 19/2/2001
A Má Semente
Rafael Azevedo

Constato, logo sou
Viver já é absurdo o suficiente; nada que possa acontecer, então, me choca ou espanta - estou preparado e aberto a tudo. Nada pode surpreender quem já analisou sua condição de ser vivo, animal, humano e mortal.

A Má Semente
Não sei o que deu em mim; mas ando me interessando, sabe-se lá por quê, pela história dessa pátria tão pouco amada chamada Bananão (Banana Mecânica, vi estampado na manchete dum jornal argentino depois da vitória sobre a Holanda na Copa de 98). Li tudo que encontrei, desde Alcântara Machado até Eduardo Bueno, passando por sites na internet e coleções daquelas de fascículos comprados em bancas de jornal. Li mesmo a carta do Caminha, relato até que divertido, ainda que inocentemente propagandista, dum momento que seguramente pertenceu àqueles únicos na história do homem - por mais piegas que isso soe - o encontro de duas civilizações estranhas entre si. Episódio que, aliás, oferece um enorme potencial para cinema ou mesmo literatura e que creio nunca ter sido realizado competentemente. As pessoas que fizeram esse primitivo início da América foram figuras interessantíssimas, ainda que repulsivas; é verdade, muito mais por terem tomado parte no fato em si que por seus próprios méritos, mas ainda assim seus papéis na história foram únicos. E nos relatos primordiais dos portugueses, encontram-se diversos fatos dignos de alguma menção pois, quando colocados lado a lado com nossa realidade cotidiana, revelam-se extremamente divertidos (deixo outros adjetivos para o leitor que quiser interpretá-los).

Os primeiros habitantes não-índios do Brasil foram exatamente quatro portugueses que ficaram depois que o senhor Pedro Álvares de Gouveia Cabral, capitão-mor da expedição, zarpou daqui rumo às Índias. Dois deles eram degredados que haviam sido mandados embora pelo rei; recusados pelos índios, ficaram na praia aos prantos assistindo os navios se afastarem. Os outros dois eram dois navegadores que fugiram durante a noite - saíram em busca das índias, era o que se comentava.

Logo após o achamento(?), o recém-batizado Brasil teve um dono. O fidalgo Fernão de Noronha, arrendou-o d'El-Rey por 3 anos em 1502, à frente dum consórcio de cristãos-novos. Suas obrigações com o território: explorar o pau-brasil, defender a terra dos espanhóis e franceses, estabelecer uma feitoria e explorar a costa, revertendo um quinto de seu lucro à Sua Majestade. Armador asturiano dono duma rede de comércio com sede em Londres, Fernão ou Fernando atuava como agente dos judeus alemães Fugger, monopolistas de cobre, e liderou a expedição que, em 1503, descobriu a ilha que leva hoje seu nome.

Brasileiros, a propósito, nestes primeiros anos de nossa história, era o nome dado pelos portugueses aos traficantes de pau-brasil.

Até nossos amigos portugas, gloriosos, porém pouco privilegiados, segundo consta, no que se poderia chamar de rapidez de espírito, anteviam o que se sucederia aqui na Terra Brasilis; logo de cara a nobreza lusa esnobou a terra, muito quente e pouco rentável, liberando-a para quem se habilitasse, ou seja, burgueses, escravos e burocratas ansiosos por um lucro rápido (e a qualquer preço) cuja mentalidade permanece nos "coronéis" do nordeste, ou degredados, párias, e criminosos de toda espécie, que vieram se instalar ao sul do país para caçar índios e acabaram glorificados como "bandeirantes", os famosos "paulistas" (que até meados de 1800 andavam descalços e falavam tupi). Tomé de Souza, primeiro governador-geral do Brasil e primeiro a tentar botar alguma ordem no bacanal sem lei de selvagens e criminosos que era o local até então, foi embora depois de dez anos dum governo até razoavelmente bem-sucedido, onde ele fundou a cidade de Salvador, capital na época, e implantou alguma ordem. Ele achava, no entanto, que fundar uma nação com degredados era "jogar na terra a má semente."

Erlkönig
Coisa fantástica é o "Erlkönig", Lied de Schubert, com letra baseada num poema de Goethe. Quando, a um certo ponto, um acorde explode em nossos ouvidos, após o crescendo em que o filho choroso conta ao pai que o rei dos elfos (Erlen), ou seja, a morte, lhe machucara - este acorde traz consigo toda a inevitabilidade do fim, a aterrorizante e palpável sensação de que algo muito grave e irreversível aconteceu, ou está para acontecer. É emoção em estado puro, o mais alto grau da música. Apesar de percebermos, na letra de Goethe e na música de Schubert o sofrimento e a angústia cada vez maior do menino ante o mal que o pai não vê e do qual não lhe pode portanto salvar, expressa pela voz desesperada do tenor, que se divide em malabarismos vocais na voz dos três personagens (pai, filho, e o Erlkönig que chama docemente o garoto para vir brincar com suas filhas) - apesar de percebermos tudo isso no desespero do filho, somente tomamos consciência, junto com o pai, do que está acontecendo, do que acabamos de ouvir, com aquele baque estrondoso em que a orquestra que Schubert colocou num piano explode. "Erlkönig hat mir ein Leids getan..."

Rafael Azevedo
São Paulo, 19/2/2001

 

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