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Sexta-feira, 12/5/2006 Sombras Persas (VI) Arcano9
O rapaz iraniano parece o Kadu Moliterno. Pele bronzeada, olhos azuis, camiseta branca e boné. Eu poderia jurar que é um surfista carioca. "O que as pessoas acham", me diz ele, repentinamente e abaixando o tom de voz, "é que ele é... louco" (o "louco" foi falado bem baixinho, sussurrando). O inglês dele não é bom, meu persa é péssimo, mas nos entendemos no salão de chá do mausoléu de Hafez, um lugar muito agradável, com mesinhas ao redor de um páteo com plantas, um ambiente adocicado pelo cheiro dos narguilés de frutas enevoando o espaço entre as pessoas. "Quem exatamente você diz que é louco?", pergunto, sem ter entendido. "Ele... (baixa de novo a voz) Khamenei..." Ao lado de nossa mesa, uma garota, com seu hijab azul claro e olhos bem delineados, observa nossa conversa com interesse, como se estivesse prestes a nos interromper. Fica quietinha, tomando seu chá, e eu, fico conversando com o iraniano loiro e praiano, nascido e criado em Teerã, turista em Shiraz como eu. Me sinto um sortudo. É raro ouvir pessoas criticando Khamenei, Ali Khamenei, o líder supremo da revolução islâmica, o homem que divide com o aiatolá Khomeini um a cada dois outdoors neste país. Um homem que aparece nas TVs como se fosse um semideus, e que deu sua bênção para que o presidente Ahmadinejad seguisse em frente com seus desvarios antiocidentais. Fisicamente, o aiatolá parece ser um simpático velhinho barbudo, um papai noel de turbante e óculos, um contraste claro em relação a Khomeini, que especialmente na Europa e nos Estados Unidos sempre aparece em fotos com seu rosto sério, as sobrancelhas escuras e expressão sisuda e assustadora, antipática. A morte de milhares de compatriotas na Guerra Irã-Iraque não colaborou muito para melhorar seu humor. Mas vieram líderes mais descontraídos. O presidente reformista Mohammed Khatami, que antecedeu Ahmadinejad, sempre aparecia na TV dando risadas. O próprio atual presidente adora se juntar à multidões em manifestações e parece tratar suas próprias frases de efeito contra o Estado de Israel como pequenas anedotas cujo conteúdo ao mesmo tempo inflama e traz alegria aos seus simpatizantes linha-dura. Num país sedento de entretenimento, em que a TV passa horas transmitindo concursos de memorização do Corão, os discursos e as risadas de Ahmadinejad e Khamenei naturalmente contagiam. Risadas dementes, diria o Kadu Moliterno de Teerã. Talvez ele seja o louco, já que a menina que nos observava poderia ser uma agente da polícia. A falta de opções de entretenimento legais no país provavelmente colabora para que o seu riquíssimo passado artístico se mantenha vivo com grande força até hoje. Estou falando especialmente dos poetas. O salão de chá no mausoléu de Hafez e o mausoléu de Sa'adi são os dois locais mais agradáveis que conheci em Shiraz. Os dois ficam em complexos em que a tumba dos dois poetas, mortos há mais de 600 anos, dividem espaço com jardins maravilhosos, com flores e ciprestes, e centenas de visitantes todos os dias - a maioria deles do próprio Irã. Muitos são estudantes que leram Hafez na escola. Por coincidência, Shiraz deu à luz os dois poetas, que disputam, junto com Ferdosi e Omar Khayyam, o título de mais querido do país. Poucos conhecem Hafez e Sa'adi fora do Irã. Mas entender o encanto dos seus versos é uma importante tarefa para se entender o Irã. Não dá para olhar as flores e os canteiros sem perceber o caso de amor milenar dos persas com seus poetas. Hafez (1324-1389) tem a maior parte de sua poesia reunida na obra Divan de Hafez, com versos virtualmente intraduzíveis, descritos por críticos como "místicos". Boa parte do que escreve é sobre o amor e sobre o vinho. Não me atrevo a traduzir para o português esta versão em inglês do poema "Helpless", do Divan, traduzido por Paul Smith. "It's the moon's time, the rose and friends anticipate; winebringer, see moon in King's face, bring wine, don't wait! I'd taken away my heart from the Spring season of the rose, but the blessings of pure ones of time carried no weight. Don't set your heart upon the world: ask from the drunkard about cup's generosity and about story of jamshid's fade. O heart, the power of love is very great; make a resolution: Hear the story well and open the ear to the tale it will relate. Except for wealth of life, I've nothing else in my hand; where is the wine so that on winebringer's glance I can liquidate. What does it really matter if morning meal had been missed; with morning wine, seekers of beloved breakfast, celebrate(...)" O vinho, para Hafez, tinha um significado especial: era uma representação da verdade. De acordo com o estudioso iraniano Abbas Kashani, isso ocorria porque, para o poeta, "assim como o vinho muda o humor e o temperamento das pessoas, a verdade muda as almas." Às vezes, porém, a bebida tem significado literal em seus versos - afinal, ninguém é de ferro. O mausoléu de Hafez é uma tumba simples de mármore no jardim, ao ar livre, coberta apenas por uma pequena cúpula sustentada por oito pilastras para protegê-la das chuvas, parecendo uma espécie de coreto. Ao me aproximar na noite em que a visitei, percebi que uma senhora jovem estava ao meu lado, encostada em um dos pilares, voltada para a tumba. A mulher lia um pequeno livro e, às vezes, balançava a cabeça levemente para cima e para baixo e mexia um pouco os lábios. Fiquei confuso, não entendi se ela estava rezando pela alma do poeta. Mas depois vi o mesmo livrinho que ela estava lendo na lojinha de lembranças do mausoléu e minhas dúvidas se dissiparam: era uma coletânea de poemas. Uma coletânea que ela lia com reverência, com um leve sorriso, e segurando o livro encostado ao peito, na altura do coração. Depois fiquei sabendo que muitos iranianos consideram obrigatório ter em casa dois livros: o Corão e uma coletânea dos versos de Hafez. Uma outra crença é a de que, se uma pessoa quer saber qual será seu destino, basta abrir um livro de Hafez e ler o verso que tudo será revelado. A mulher, possivelmente, estava lendo seu futuro. Há livros com poemas de Hafez que são vendidos exatamente com esse objetivo, serem "horóscopos poéticos". O outro grande poeta de Shiraz, Sa'adi, é mais velho, tendo nascido em 1207 e morrido em 1291. Alguns de seus versos estão nas paredes do pequeno salão erguido para abrigar sua tumba, ao norte da cidade. Em sua obra Gulistan - O Jardim das Rosas, Sa'adi narra episódios que testemunhou durante suas viagens, intercalando versos e prosa. Em muitos casos, a moral das histórias é de que a realidade se sobrepõe a tudo, inclusive as boas intenções. "Nenhum tipo de polimento vai melhorar o ferro cuja essência é originalmente ruim. Lave um cão nos sete oceanos, ele ficará apenas mais sujo quando ficar molhado. Se o asno de Jesus for levado a Meca Ele ainda será, na volta, apenas um asno." Sa'adi fala muito sobre a velhice e a juventude, como neste verso, em que uma mulher que se casou com um jovem agressivo e que a trata mal diz que não se arrepende de ter se casado, apesar de ter sido cortejada antes por um homem idoso que lhe dizia que iria lhe garantir uma vida tranqüila: "Apesar de toda essa violência e natureza apressada Eu devo tentar satisfazer a ti, porque és belo. Estar contigo no inferno em chamas é para mim Melhor do que estar com o outro no paraíso. O odor de uma cebola, vindo de uma boca em um rosto bonito, É de fato melhor que o de uma rosa em uma mão feia. Um rosto belo e um vestido bordado com fios de ouro, Essência de rosas, aloés perfumadas, tinturas, perfume e luxúria: Todos esses são ornamentos de mulher. Veja o homem; seus testículos são ornamento o suficiente." Também dentro de um parque, o mausoléu de Sa'adi tem a particularidade de ter sido construído ao lado de uma lagoa subterrânea. Para chegar à casa de chá, você encontra uma escada no jardim que desce e vai dar nessa lagoa. As mesas ficam em arcadas ao redor da água azulada, com alguns peixes, e onde as pessoas jogam moedas. Pedi um sorvete ignorado completamente o Ramadã (me disseram que viajantes não precisam seguir a regra de só comer após ao anoitecer, e havia vários turistas iranianos tomando sorvete ao meu redor) e duas garotas de Teerã, muito simpáticas, vieram conversar comigo. Elas já haviam me pedido antes para que eu tirasse uma foto delas no jardim. "Não sei se você já foi a Persépolis, mas nós queremos ir hoje à tarde e estamos procurando alguém para dividir o custo do táxi conosco", me disse uma delas, Laleh, o que me fez amaldiçoar meu azar. Um dia antes, eu havia gasto uma fortuna para ir sozinho ao sítio arqueológico. Conversamos mais, expliquei a elas porque eu não poderia aceitar o convite e as aconselhei quanto aos preços. Depois que elas se despediram de mim, quase todo mundo que estava na casa de chá havia notado minha presença e me cercaram. Eram cerca de dez pessoas, e elas me perguntaram de tudo: de onde eu era e para onde ia, meu nome e meu sobrenome, meu trabalho e se era casado. Todos se esforçando para falar inglês. Naquele momento, parecia que era eu, e não o imortal Sa'adi, a grande atração turística do lugar. Voltei à região do bazar para ver algumas mesquitas que ainda não havia visto. Depois de passar novamente pelo caos das buzinas e pela confa das pessoas tomando cada centímetro das calçadas, comecei a caminhar por uma avenida que, progressivamente, me levava para vizinhanças mais calmas, com menos carros e até cheiros diferentes no ar. Cheiro de pão, por exemplo. Eram quatro da tarde. Os iranianos têm suas padarias, mas não é o pão francês que é o mais popular na cidade dos poetas. A esta hora, as pessoas chegam e se amontoam, dez, quinze delas, em frente a esses locais, salinhas dando para a calçada, sempre sem nenhum tipo de identificação. Depois de uma venda completamente caótica, com direito a berros e toma-lá-dá-cá de dinheiro que nem é contado, as pessoas saem com duas ou três folhas de um pão fino, retangular, que parece até um pano. Em Teerã eu já havia provado, ele pelo menos tem gosto de pão. Mas é a forma que é distribuído que chama a atenção: as "folhas" são distribuídas sem nenhum saquinho, embrulho ou papel. Depois, os consumidores vão a umas mesinhas colocadas na calçada e se põe a contar os pães e a dobrá-los. Depois, saem caminhando com elas, dobradas junto ao peito ou embaixo do braço, comendo pedaços no caminho. Depois da padaria, à direita, encontrei um lindo portal de uma mesquita. Esperava pagar 15 mil rials para entrar, mas, ao chegar, percebi a porta fechada: empurrei, ela se abriu e, lá dentro, encontrei um páteo e uma rasa piscina retangular e dois arcos contendo o Mihrab (local que indica para onde está Meca) com um trabalho de azulejos estonteante. Como no caso da mesquita que visitei no primeiro dia, nesta, a mesquita Nasir-Ol-Molk, são de tons de cor-de-rosa. Mas se os motivos florais também são presentes nesta, um detalhe no mínimo estranho me chamou a atenção: em vários dos azulejos, há ilustrações de casas, ou melhor, de construções que parecem ser igrejas. Eu percebi isso primeiro justamente no Mihrab. Depois, olhando com cuidado uma parede lateral, descobri outras ilustrações em que as igrejas parecem ter até cruzes. Que diabos é isso? Perguntei a várias pessoas e nenhuma soube me dar uma explicação. Eu certamente não esperava encontrar nenhum tipo de sincretismo como esse no Irã, especialmente numa mesquita. O enigma me acompanhou na minha caminhada até a Zand, a Avenida Paulista de Shiraz (sem os prédios altíssimos e as antenas...), onde cheguei já de noite para testemunhar a agitação dos cinemas, das lojas de artigos eletrônicos e das lanchonetes. Decidi prestar uma irônica homenagem ao American Way of Life comendo um hambúrguer e uma pepsi. Um hambúrguer caseiro, grosso, com suculentas fatias de tomate e cebola, um deleite. Na parede, algum funcionário havia colado uma foto de um Big Mac com batatas fritas, como que para embalar a apreciação de seus sanduíches. Mal sabem meus amigos que o hambúrguer deles é melhor do que o grande e pasteurizado ícone americano. Voltei meus olhos para a rua: uma loja de artigos para fotógrafos colocou numa janela um desses painéis eletrônicos que ficam mostrando mensagens com um monte de pontos de luz coloridos. A mensagem que piscou para mim: "Em nome de Deus, seja bem-vindo". Em nome de Deus, adeus Shiraz. Próxima parada, a capital do zoroastrismo.
Arcano9 |
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