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Quinta-feira, 25/5/2006 Novos autores: literatura, autonomia e mercado Adriana Baggio Quando se pretende abordar o assunto "novos autores", é complicado não falar em internet. Se hoje existe uma percepção de uma categoria específica dentro da literatura, que engloba escritores novos e novos escritores, é porque surgiu uma maneira de se conhecer uma produção diferente do que vinha sendo feita no mercado editorial brasileiro. Eu poderia falar em "cenário editorial", mas a palavra "mercado" tem mais a ver com esse fenômeno. Os autores que despontam são chamados de novos em relação a uma geração de escritores já consagrados, com lugar fixo nas prateleiras das livrarias. Gente que consegue viver de literatura, alguns até muito bem, mesmo dependendo de um público leitor muito restrito. Por conta da dificuldade de manter a rentabilidade do negócio, as editoras arriscam muito pouco. Portanto, autores novos, com propostas novas, sempre tiveram dificuldade em fazer o manuscrito virar impresso. Havia uma produção, mas não existia distribuição ou divulgação. Quando os blogs tornaram a publicação na internet muito mais fácil e acessível, uma quantidade enorme de gente passou a divulgar seus textos para todo mundo, sem a intermediação de uma editora. Não haveria escritores na web se não houvesse público. E, de repente, escritores cujos romances, contos e poemas nunca tiveram a oportunidade de freqüentar uma livraria, passaram a ter milhares de leitores fiéis, através da internet. A percepção desse movimento, de que havia um burburinho sobre esses escritores e a classificação deles como "novos autores", deve ter despertado o interesse das editoras tradicionais. Acredito que, se não houvesse uma espécie de movimento, de categorização, estes autores continuariam sendo lidos somente no ambiente virtual. A partir do momento em que eles despontam como algo que tem a chancela da novidade, quase como se já embalados em uma coleção, passam a ser interessantes enquanto produtos para o mercado editorial. Não é ruim ser produto. Aliás, imagino que este seja o status que muitos escritores almejam. Ser publicado, distribuído e divulgado, na lógica do mercado editorial, é ser considerado bom, capaz de despertar o interesse do leitor, capaz de gerar lucro. Assim, por mais que muitos dos novos escritores se criem e desenvolvam na web, é quando são publicados em papel que eles se realizam. Meio x qualidade x quantidade A qualidade intrínseca do texto não depende do meio em que é disponibilizado. No entanto, a percepção de qualidade, pelo menos para a grande massa, está relacionada à lógica do mercado. Se as editoras só publicam o que as pessoas gostam, o que vende, um autor que consegue ser publicado pela editora escreve bem, escreve algo que pode ser vendido. Com certeza existem autores maravilhosos que nunca conseguirão isso. Da mesma maneira, muito lixo é embalado em capa bonita e colocado à venda. Me parece, porém, que o autor do "lixo" tem mais chances de se dar bem (porque está publicado em livro, com preço indicado na etiqueta) do que o bom autor de textos virtuais (porque sua produção está no ambiente virtual e pode ser lida de graça). Evidentemente, existem exceções à regra. Mas acredito que o juízo de valor monetário ainda suplanta o de valor estético, mesmo entre os próprios escritores. Apesar de toda a dificuldade, o movimento de "novos autores" oriundos da web chama a atenção para a quantidade de textos que são disponibilizados em blogs e em publicações virtuais. Alguns acham ótimo porque isso representa uma democratização da escrita e da leitura. Outros acham que é preciso avaliar com cuidado, porque existe muita confusão entre escrever e fazer literatura. A polaridade de opiniões materializa um paradoxo da própria escrita. Escrever é algo que, a princípio, está ao alcance de todos. Existe uma concepção da escrita apenas como código de comunicação. Se ela comunica, está cumprindo seu papel, ainda que seja como fala de índio em filme de faroeste: "mim querer", "mim fazer". Nesse nível, escrever é uma habilidade praticamente universal entre pessoas alfabetizadas. É diferente, por exemplo, de conhecer matemática, física ou química. Tive uma aluna, certa vez, que não conseguia encontrar a média simples a partir das notas de três provas, mas tornava perfeitamente compreensíveis seus desaforos por e-mail, mesmo sem usar as regras mas básicas de concordância e sintaxe. No outro extremo, ser escritor também é visto como algo acessível somente a talentos iluminados, cujo dom vem do berço. Representando esses dois pólos, estão as pessoas que escrevem na web e se acham escritoras somente porque ajuntam uma palavra atrás da outra, e aquelas que não admitem que um ser comum possa produzir boa literatura. Mas, afinal, o que é (boa) literatura? O que determina a qualidade de um texto, além da lógica do mercado? Questões como essas rondam muitas outras facetas da expressão humana, como a música e a arte, por exemplo. Os parâmetros em relação aos quais se estabelecem juízos de valor podem ser bastante claros, como os aspectos formais, ou completamente difusos, como a subjetividade do crítico. No meio do caminho, existem outros pontos que "atestam" a obra. O caráter institucional é um deles. Assim como uma obra de arte pode ser considerada como tal por estar dentro do museu, um texto pode ser literatura se for assim classificado por uma editora ou por alguma outra instituição. A editora tem sido, durante muito tempo, uma instituição representativa para a chancela literária. Mas como ela não dá conta de tudo que vem sendo produzido e como seus critérios não cabem no modo de distribuição virtual, outras instâncias surgem para dar conta da tarefa. Uma delas é a universidade. Agora, além de analisar a literatura, já se pode aprender a fazê-la, com direito a diploma e tudo. Um curso superior de Formação de Escritores e Agentes Literários vai ser oferecido a partir da metade do ano pela Unisinos, uma universidade localizada na região metropolitana de Porto Alegre. Parece lógico que a proposta venha do Rio Grande do Sul. Tenho a sensação de que o estado, hoje, é um dos maiores celeiros de novos autores, tanto de web quanto de livro. Uma hipótese confirmada pelo coordenador do curso, o poeta e escritor Fabricio Carpinejar, que lista os autores, as editoras, os eventos e blogs, enfim, toda uma "cadeia afetiva" gaúcha, que chama a atenção nacionalmente e que está pronta para compartilhar suas experiências. No contexto do curso superior, o aluno aspirante a escritor vai encontrar diversos parâmetros para o julgamento da sua produção, que será chancelada pelos professores, pelas notas, pela instituição. Daí vão surgir novos critérios de avaliação, que talvez privilegiem mais os aspectos formais. Afinal, enquanto alunos universitários, os escritores deverão ter nota suficiente para passar de ano e obter o diploma. E para dar nota, é preciso critério. A editora pode recusar um manuscrito com desculpas vagas. Um professor precisa deixar claros os objetivos de um trabalho e avaliar com base neles. São regras que, aplicadas a esta atividade, acabam parecendo muito subjetivas. Para neutralizar as ambigüidades, o caminho menos áspero é valorizar os aspectos formais, que podem ser estabelecidos e cobrados com mais objetividade. Se o curso "legitimar a profissionalização e a seriedade que já são praticadas no estado", como acredita Carpinejar, é possível que os parâmetros da universidade passem a contar na distinção entre o que é ou não literatura. Profissão: escritor A vantagem de um curso como este é que um dos paradoxos da escrita, a mitologização do escritor, cai por terra quando se presume que ela pode ser ensinada e aprendida. Quando perguntei ao Fabricio qual sua resposta às possíveis críticas por parte dos puristas, dos que acreditam na literatura como uma atividade de escolhidos, ele respondeu com uma lógica de quem tem batalhado para se dar bem no jogo do mercado editorial, de quem possui uma visão realista sobre o assunto: "há uma idealização romântica que apenas distancia e isola as pessoas da sua arte e do convívio. A universidade qualificará autores. A iniciativa quebra alguns tabus intelectuais, ensinando o best-seller e dando espaço para o livro didático". Parece haver um alinhamento claro entre a proposta acadêmica do curso e as demandas do mercado, diminuindo o fosso que normalmente existe entre essas duas instâncias. A Unisinos em si é uma universidade que procura preservar a credibilidade de uma instituição tradicional, ao mesmo tempo em que percebe a dependência que o segmento educacional tem do mercado de trabalho. Uma olhada nos cursos oferecidos pela Unisinos mostra que, ao lado das opções clássicas, estão outras mais alinhadas às profissões da moda ou às necessidades das indústrias da região do Vale do Rio dos Sinos. O curso de Formação de Escritores é mais uma tática dessa estratégia. O aluno vai se sentir atraído por um curso novo, que leva a uma profissão glamourosa. O pai do aluno vai perceber que existe uma preocupação da universidade em encaminhar o futuro escritor ao mercado de trabalho, mesmo que seja em outras atividades menos nobres, que o programa do curso denomina, de forma abrangente, de "produção de textos". Ao assumir a orientação para o mercado, a proposta do curso de formação de escritores talvez mostre uma tendência mais realista de encarar o ofício. Reconhecer o poder e a mecânica da indústria cultural não significa uma perda de autonomia para a literatura. Manter a indepedência criativa e conquistar espaço nas prateleiras é um jogo dinâmico, que envolve tanto o escritor e a editora quanto o leitor. Nos anos 60, Andy Warhol conseguiu ser respeitado como artista mesmo trazendo para seus quadros a antítese da arte - os produtos e a mecânica do consumo e da produção em série. No entanto, essa inclusão não teve nada a ver com uma submissão. Ao contrário: Warhol acabou por estabelecer uma reflexão sobre o sistema justamente pela forma de representá-lo. Mesmo o filósofo alemão Theodor Adorno, talvez o maior crítico da indústria cultural (em que a lógica produção literária também se insere), reconhece: "o caráter mercantil da arte se desfaz ao se realizar completamente". Será que a literatura também pode se entregar ao mercado sem perder sua autonomia? Adriana Baggio |
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