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Quinta-feira, 6/7/2006
Páginas do Diário de Um Leitor (II)
Ricardo de Mattos

No dia 25 de Abril do ano 2.006 de Nosso Senhor, estava eu no escritório tentando entender a criptografia de um colega de profissão, quando o porteiro avisou-me da chegada de uma encomenda. Desci ressabiado, pois não havia pedido nada. O pacote era grande e com alívio descobri que não trazia escrita por fora nenhuma mensagem do tipo "Morte ao Tirano" ou "Mande um abraço ao Diabo". Ao alívio seguiu-se a surpresa em descobrir que o corpo editorial do Digestivo Cultural havia me enviado uma caixa repleta de livros. Escrevi ao Julio Daio Borges agradecendo a lembrança e ele respondeu-me que a seleção "tinha a minha cara". Fiquei preocupado, pois entre os volumes uma obra aborda o infanticídio.

Gastamos com nossos incômodos tempo maior que com nossos prazeres. Levei dois dias para descobrir o que pretendia a parte contrária. Algo absurdamente simples transformou-se num calhamaço de quase 150 folhas, inúmeras petições e muitos gastos. Ao fim do exame, se atualizei-me em certas questões legais, precisei esclarecer ao meu cliente que não seria necessário tomar atitude alguma.

Minha delícia está em saber que, se cinqüenta anos mais eu viver, durante cinqüenta anos terei o que ler e ainda sobrará. Desde o ano passado busco estabelecer uma disciplina de leitura. Ultimamente, separo dez livros, acomodo-os sobre a mesinha ao lado da cama e prefiro não iniciar a leitura de outros enquanto não os terminar. Não é uma regra inflexível, pois nem a leitura técnica que realizo no escritório, nem a de revistas interferem nesta seleção. Do mesmo modo, posso entusiasmar-me com certa obra e, como bom brasileiro, furar a fila. Aqui posiciono a caixa referida acima: se não li por inteiro nenhum dos livros, estou informado sobre o conteúdo de cada um. Entretanto, a seleção periódica tem suas vantagens. A primeira é a variedade das obras lidas: misturo literatura nacional e estrangeira, história, religião, filosofia, ciências e outros assuntos que antes eu lia por blocos. A segunda vantagem é a feliz obrigação de vasculhar meus armários atrás de livros comprados ou ganhos e ainda não lidos. Desta forma, aproxima-se o momento de eu ler o Compêndio Narrativo do Peregrino na América, escrito no século XVII por Nuno Marques Pereira e considerado o primeiro exemplar de narrativa ficcional em prosa escrito aqui. A primeira referência sobre ele encontrei-a no Música Popular No Romance Brasileiro, do crítico e historiador musical José Ramos Tinhorão. Seguindo o rastro, escrevi para a Academia Brasileira de Letras, responsável pela edição, perguntando se havia algum exemplar disponível à venda. Semanas depois, a obra, em dois volumes, chegou-me gratuitamente pelo correio. Revelando esta gentileza da Academia, espero que não me baguncem o coreto sobrecarregando-a de pedidos de livros grátis.

Há pouco tempo terminei de ler O Caçador de Pipas, do afegão Khaled Hosseini. Foi meu pai, este leitor instável, quem me pediu que o encomendasse. Não excluo seu desapontamento ao saber que se tratava de um romance e não um livro de reportagem ou história contemporânea. Eu li e gostei, embora o enredo seja simples e frustre quem goste de sangue escorrendo das páginas. Resume-se à história do personagem Amir, iniciada na década de sessenta do século passado no Afeganistão e encerrada nos Estados Unidos já no começo deste século. Tem um bocado de história afegã recente e outro sobre uma questão mal resolvida do passado. Devo ter gostado do livro devido a certa simpatia inexplicada pelo Afeganistão. Um país tão antigo, citado por Marco Polo no seu curioso livro de viagens e que desenvolveu até uma raça própria de galgo - o Afghan Hound - reduzido a uma plantação ilícita de papoulas cercada de ruínas. Nem homenagens ao país têm futuro, pois semeei papoulas no jardim e as sementes não vingaram.

Depois do Caçador..., quitei-me com Eça de Queiroz lendo A Ilustre Casa de Ramires. Esta obra tem sua leitura dificultada pela mistura que ele faz, a cada capítulo, do seu próprio texto com o da novela que estaria sendo escrita pelo personagem Gonçalo Ramires. Se seu objetivo fosse apenas criticar as reconstituições históricas em voga à época ou logo antes, ele já teria sido bem sucedido. O texto escrito pelo personagem é tão enfadonho que sem remorso pulei as páginas e não me envergonho em ignorar seus detalhes. É suficiente saber que narra e louva feitos guerreiros de certos antepassados de Gonçalo. Porque se narra e se louva, revela-se na conclusão da obra. A leitura do romance, todavia, basta para que se entenda tudo e não se perca nada. Há livros inspirados de Eça, como Os Maias e O Primo Basílio. Noutros, como A Cidade e as Serras e a Casa de Ramires, ele aplica-se demais em defender posturas: no primeiro, apologia do campo e sua defesa em relação à cidade; no segundo, restauração em Portugal da antiga glória. Excluídas as páginas duplamente fictícias, o romance em si é de apetite ou "da pontinha", expressão pronunciada enquanto se aperta a base da orelha e que conheci quando criança. Reencontrei-a no livro, pois creio já ter caído em desuso.

Na semana passada, interrompi a leitura da última seleção de livros. Era a vez de Terras Paulistas - Histórias, Usos e Costumes, coletânea de textos de vários autores, quando encontrei e comprei Lendas da Criação - A Saga dos Orixás escrito por Rubens Saraceni, um meticuloso estudioso do assunto. Quando conto que me converti ao kardecismo, é comum perguntarem-me: mas você é de mesa branca ou de terreiro? A mistura feita pelos leigos entre o Espiritismo codificado por Allan Kardec na França do século XIX - doutrina à qual me vinculei - entre a Umbanda, o Candomblé e outras religiões e seitas é tão grande que não custa informar-me para poder esclarecer as diferenças e explicar onde começaram as confusões. A preocupação com o esclarecimento alheio, contudo, não se sobrepõe ao meu gosto em conhecer as religiões existentes e encontrar os pontos comuns entre as mais díspares. E como há pontos comuns... O livro de Saraceni, embora de leitura difícil, é importantíssimo para quem deseja saber a origem mitológica real dos Orixás e entender o que foi deturpado pelo tempo. Algumas pessoas sentem arrepiar os pelos do cangote à simples pronúncia do nome de Pombagira, pois conhecem-na apenas como um diabo feminino. A rigor, contudo, ela é a responsável pelo desejo, pelo "ânimo em se fazer aquilo que se deve", pela iniciativa de abandono da letargia. A Orixá "Obá" é a equivalente nigeriana da grega Palas Atena, da romana Minerva, da divindade hinduísta Ganeisha e da católica Santa Ana Mestra. É a protetora do conhecimento, dos estudos. Cinco linhagens religiosas distintas e em quatro uma mulher é a responsável pela guarda ou proteção do conhecimento. Ganeisha era um menino que foi decapitado pelo próprio pai e ao qual se colou uma cabeça de elefante. No xintoísmo, Amaterasu é a divindade - kami - do Sol, responsável pela claridade e por extensão, pela claridade espiritual.

"Vivemos em tempos modernos", diz-se, "nem em Deus acredita-se muito, quanto mais em orixás, deuses, gnomos e divindades com cabeça proboscídea". Infelizmente, é verdade que rebaixam Deus a mais um mito e negam-No com maior facilidade. De qualquer forma, não faz muito tempo que um grupo de pessoas obteve dos tribunais gregos o reconhecimento do direito a praticar cultos pagãos em honra de uma dúzia de antigas divindades. Negam a Deus e apegam-se na Ciência. Não a compreendem, mas não deixam de sentir o apelo do sagrado, da necessidade de buscar algo além da matéria. Como são orgulhosos demais para reatar com Deus, retornam a velhos mitos, crenças e rituais ou inventam novos.

De volta aos livros. A mesma predileção que eu tenho por eles, meu primo tem por filmes, sendo porém mais eclético no seu gosto do que eu no meu, no que ele está certo. Foi dele, portanto, a idéia de assistir O Código da Vinci. Aceitei a proposta com a segunda intenção de não precisar ler o livro. Há fidelidade do filme ao texto? Não há? Não sei, e até agora não fiquei mais grisalho por causa disso. Ao meio do filme eu já sabia que Sofia era a descendente direta da alegada união entre Jesus Cristo e Maria Madalena e que seu avô era na verdade seu guardião. Anos de estudo e pesquisa de Leonardo na busca do melhor desenho, o melhor tom, a melhor técnica, para o tarado de Dan Brown recorrer a sua obra e escrever uma historinha especulativa. Agora o vulgo profano dedica-se ao debate do tema: houve mesmo a união? E como o pintor sabia? O entretenimento nada ganha com este filme de final previsível. A obra de Leonardo da Vinci nada ganha com as pessoas procurando por cálices e outros símbolos. Jesus Cristo não ganhará mais adeptos nem seus ensinamentos serão melhor seguidos caso o leitor ou o espectador conclua pela existência ou não de descendentes. É a segunda vez que um filme livra-me de ler um livro ruim. A outra vez não é publicável neste site de família. Só posso dizer que minha mãe quase comprou a obra evitada, pensando tratar-se de um livro sobre seu signo do zodíaco.

Retrato IX
Professora Mariana


A bisavó de Mariana foi professora na época em que a profissão conferia "status". A avó de Mariana decidiu ser professora como forma de atrair sobre si a atenção materna caracterizada pela indiferença. A mãe de Mariana escolheu ser professora porque sua própria genitora ainda estava na ativa e poderia abrir-lhe portas. Mariana não escolheu o magistério. Quando nasceu, sua vocação estava tão definida para a família que nem lembraram de indagar-lhe se ela possuía outra opção.

Sua vida foi uma linha reta: escola, curso de magistério e faculdade de pedagogia. O curso superior foi um passo adiante em relação às suas parentas, mas o cotidiano igualou-as. Somente a prosa sobre a escola afligiu um pouco a avó. É que as histórias já eram comentadas por sua mãe, foram vividas por ela, e depois recontadas pela filha. Agora sua neta com as mesmas intrigas entre as colegas, a incompetência da diretora e o comportamento variável dos alunos. Jecoaba não é mais a cidade rural do século XIX, mas certas existências e certos modos de existir parecem conservados em âmbar, para horror dos que já vieram e pavor das últimas gerações.

A bisavó de Mariana não teve um bom casamento com o médico da cidade. A avó de Mariana não teve um bom casamento com o atrapalhado aspirante a banqueiro, cujo maior lucro foi não perder o próprio teto na falência que enfrentou. A mãe de Mariana não teve um bom casamento com o engenheiro apático, mais afeito aos livros de História que ao esforço do cálculo exato. Como a atualidade não é pródiga de tão bons homens quanto os de antigamente - e si o paradoxo é proposital na escrita, é desprovido de ironia na fala das mulheres -, viu-se com bons olhos o tempo passar e a solteirice de Mariana permanecer. Si o casamento é improvável, o namoro é desnecessário. Sendo assim, corrija-se os cadernos dos alunos e pense-se noutra coisa. O importante é ter saúde.

Porque Mariana tem mais de trinta gatos em casa ninguém teve coragem de questionar. Para os de fora, excentricidade da solteirona. Para os da família, apego aos bichanos semelhante ao da tia-bisavó Olgária que morou em Campinas. Sempre há um antecedente familiar imediato ou não. O que escapa ao observador obtuso é que os gatos de Mariana levam a vida que ela mesma gostaria. Saem pelas ruas e nunca se sabe si voltarão. Alguns retornam dias depois, lanhados das disputas sexuais, tanto na corte e acasalamento, quanto contra outros machos. Um gato gordo ressurge ébrio do sangue da ratazana que trouxe para terminar de devorar sobre o sofá. Certa gata, embora de raça, cruzou com tantos gatos que jamais sua prole foi homogênea. Mariana já viu vários casais de gatos durante o coito reprodutivo e concluiu não ter condições de esperar para si sequer um beijo com o mesmo ardor.

O quintal da casa de Mariana é pequeno demais para a mangueira ali plantada por seu pai. Logo ela precisará ser cortada. Um dos seus galhos quebrou, mas não morreu, visto que os condutores da seiva não se romperam. Este galho forma com o muro um esconderijo onde se pode recolher com discrição. Ao perceber-se completamente só em casa, Mariana costuma separar das ninhadas os filhotes mais bonitos e retirar-se para o refúgio arbóreo. Após amamentá-los no próprio seio, estrangula-os chorando baixinho.

Ricardo de Mattos
Taubaté, 6/7/2006

 

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