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Sexta-feira, 30/6/2006 Sombras Persas (IX) Arcano9
O ônibus atravessa o deserto. Dos dois lados, até perder de vista, só se vê uma planície ocre, com terra arenosa e arbustos secos. Arbustos como estampas num tecido de calor e luz, pontinhos distribuídos a intervalos regulares. No horizonte, há montanhas altas, às vezes apenas presentes pela silhueta cinza, outras vezes, por estarem numa melhor posição em relação ao sol, com mais detalhes visíveis de suas rochas. Tudo é inóspito. Meus olhos doem, pedem liberdade para se abrirem sem ter que se proteger de tanto amarelo. Gotículas se suor surgem na minha testa. Olho de novo; vejo uma pessoa perdida andando no nada. Um nômade, ou talvez não. Pisco, olho de novo e ele não está mais lá. A desolação do trajeto evoca o semi-árido do Nordeste brasileiro, mas há esses detalhes que me trazem de volta à Ásia, detalhes que se repetem, se repetem e se repetem com velocidade na janela empoeirada. De repente, numa cidadezinha, de casas todas feitas de lama seca, uma fortaleza, completa com torres e muralha, tudo também feito dessa massa ocre. Surge, acena, se vai com velocidade. Quem construiu isso? Não está no guia. No Brasil, uma fortaleza assim seria um importante ponto turístico. Aqui, é apenas uma miragem apressada. Mesquitas. Madrassas. Uma grande cúpula em formato de cebola, acompanhada por altos minaretes. A cúpula sem detalhes suntuosos. Lugar desconhecido, ignorado. E ainda assim, magnífico. Depois da pessoa-miragem, não vejo mais nenhuma, ninguém, nem uma alma. Só nos outdoors. Na estrada, nas bifurcações, nas rotatórias nas entradas das vilas, os cartazes me mostram os atores da demorada peça que usa como palco este país inteiro. Os outdoors com o aiatolá Khomeini e o aiatolá Khamenei. Khomeini está morto mas muito vivo, movido a essa energia solar. Khamenei, um Sancho Pança, fiel escudeiro continuísta dos ideais que transformaram este país em algo único no mundo. Só duvido muito que a tal revolução tenha mudado em algo a vida de quem quer que seja que viva nesse sertão iraniano. Os outdoors causam sombra na estrada. Khomeini e sua sombra. Xerxes e sua sombra em Persépolis, o Imã Hussein e sua sombra nas mesquitas, Hafez e Sa'adi e suas sombras em Shiraz. No sol implacável, a antiga Pérsia busca consolo em suas sombras. As sombras, manto inconsútil, passado e presente, Pérsia e Irã. As sombras prosseguem até o anoitecer. Ninguém sabe quando o sol vai se pôr. Conheço no ônibus um casal de espanhóis dando a volta ao mundo. Vinham do Vietnã e do Camboja, atravessaram Índia e Paquistão, tudo de ônibus. Começamos a conversar sobre o Irã e sobre as coisas que só vimos neste país. As gravatas, por exemplo. Pergunto a eles. "Isso eu já sabia", diz o jovem, "eles consideram a gravata um símbolo da dominação cultural do Ocidente." Não há empresário, político ou homem nenhum neste país que use gravata. O presidente Ahmadinejad nunca usa; o ministro do Exterior, em suas coletivas à imprensa estrangeira, aparece com sua camisa social abotoada até o pescoço, mas não o detalhe que estamos tão acostumados a ver. E os cachorros? Isso, meus amigos espanhóis não sabiam. Por aqui, nada de latidos. Os cachorros não existem. São considerados impuros pelos muçulmanos. Eu os vi no Uzbequistão, país islâmico sunita, mas aqui jamais. Dizem até que há Lulus e Fidos no norte de Teerã, na região onde vivem os mais ricos. São usados para proteger as casas. Estranho não ver cachorros magros zanzando nos vilarejos perdidos que o ônibus atravessa. Estranho não ouvir auauaus eventuais. Começo a lembrar como gosto de cães e acho que, em toda a minha viagem, não encontrei um momento em que tenha ficado mais chocado com a diferença entre a minha cultura e a cultura local. Os cachorros sempre me deram alegria, sempre tive um em casa. Aqui, essa fonte de alegria não existe. Uma noite fria à beira do Rio Zayandeh. Em um intervalo entre uma garoa e outra, dezenas de pessoas se juntam em uma área coberta entre as arcadas debaixo da Ponte Khaju, cujos arcos estão todos iluminados por holofotes de luz laranja. O grupo de homens, alguns com esposas e namoradas, faz sua versão dos programas de TV como American Idol, tão populares na América e na Europa. Um sujeito toma o centro roda e começa a cantar. Começa tímido, mas embala e, dois minutos depois, empresta toda a força de sua garganta a uma canção que parece ser conhecida por todos, menos por mim. A platéia acompanha, uns só mexendo a cabeça, outros cantando junto. O artista continua e continua, canta uns dez minutos até que ninguém mais aguenta ouvir ele, e finalmente pára. Um minuto de silêncio e, espontaneamente, um garoto de uns 16 anos, no canto da sala, começa a cantar. Não longe dali, na Ponte Si-o-Seh, encontro uma linda área com mesinhas ao ar livre, onde as pessoas se reúnem para tomar chá e fumar narguilé. Sento numa delas. A noite continua bem fria, finalmente percebo que é inverno, parece que estou em Campos do Jordão. O rio passa rápido por uns degraus submersos logo abaixo da ponte, entre seus desenas de arcos lindos. Depois de passar pelos degraus, a água acalma, e tão pacífico fica o rio que se alugam pedalinhos por ali no verão. O rio não é muito sujo e há quem, mesmo à noite, arrisque uma pescaria. O narguilé chega e passo a próxima hora e meia contemplando um dos pontos mais bonitos da cidade que é considerada a jóia mais valiosa da coroa iraniana. A cada baforada do cachimbo, a cada gole de chá, homenageio velhos amigos, meus irmãos, meus pais, antigas e maravilhosas namoradas, professoras do primário, cidades perdidas no interior da Bahia, o centro de São Paulo, outros planetas. Isfahan é uma cidade perfeita para isso. Isfahan. Não há cidade mais evocativa do imaginário associado à antiga Pérsia. Lembro da primeira vez que ouvi falar dela. Foi em um livro de ficção, numa descrição de como a cidade teria sido no século XII: "Era um lugar voluptuoso, cheio de hemisférios e curvas, com grandes prédios com cúpulas reluzindo na luz do sol, mesquitas com minaretes como lanças, verdes áreas abertas e ciprestes (...) As ruas eram cheias de homens com turbantes, mas não mulheres. Ele passou por uma imensa praça aberta; e, então, talvez uma milha além, outra. (...) E, por alguma razão, ele achou certo cavalgar devagar através desta cidade na margem norte do Rio da Vida." Noah Gordon em O Físico Como ocorreu quando visitei as uzbeques Samarkand e Bukhara, Isfahan se mostra não exatamente como eu esperava, mas não me decepciona. Seu rio, seus palácios e mesquitas fazem um conjunto harmonioso que torna seu centro diferente, menos caótico, do que o de outras cidades iranianas. Na verdade, daqui, tomando chá e fazendo evaporar a fumaça com gosto de laranja, Isfahan me parece muito européia. No magnífico complexo da Praça Imã Khomeini, onde estão talvez as duas mesquitas mais lindas do planeta, Isfahan me parece persa, nobremente persa, mais persa do que nunca. Não é à toa que dizem que esta cidade, sozinha, é metade do mundo. A cidade tem uma história antiga, mas só no século XVI, com a dinastia safavida, que a cidade começou a construir a sua fama. Os safavidas - que, juntamente com os arquemenidas e os sassanidas, formam as três grandes dinastias da antiga Pérsia - sucederam Tamerlão e invasores turcos e turcomanos, estabelecendo a capital em Isfahan pela primeira vez. O maior dos reis safavidas, Shah Abbas I, foi o responsável pela construção das grandes mesquitas que hoje ocupam a Praça Iman Khomeini, e também por algumas das pontes monumentais, depois reformadas e reconstruídas. Mas o esplendor de Isfahan como capital não duraria muito, pouco mais de um século. Invasores afegãos conquistaram a cidade, matando milhares, ecoando o massacre de 70 mil moradores e Isfahan por Tamerlão no início do século XV. Isfahan deixaria de ser capital no século XVIII, abrindo caminho para Shiraz e, posteriormente, Teerã. Um elemento da cidade que certamente antecede em muito tempo os safavidas é o imenso bazar. Ele existe há mais de mil anos, e pode ser comparado com o Teerã, ainda que não em importância, mas em tamanho. Fugindo da chuva à tarde, me perdi lá dentro por pelo menos uma hora, dividindo as estreitas ruelas com as motos e os cheiros da especiarias. O bazar, com suas voltas e voltas infinitas, se estende em uma área entre a Praça Khomeini e a Mesquita Jameh. Foi nessas andanças que comecei a ficar com fome e encontrei um grupo de pessoas fazendo algazarra dentro e fora de um pequeno restaurante, espremido entre as lojas de roupas e especiarias do escuro bazar. Fiquei curioso - o lugar realmente estava sendo disputado pelos locais e contava com uma decoração um tanto quanto surreal: azulejos brancos nas paredes, como em um banheiro, e carcassas de animais mortos (creio que carneiros) penduradas em um grande freezer, outras ao ar livre, ao lado das mesas, gotejando sangue no chão. Logo na entrada, um grande forno estava sendo usado para aquecer fofos pães nun, enquanto, ao lado do forno, uma grelha aquecia o que pareciam ser hambúrgueres. Uma fumaça às vezes grossa saía da grelha, com cheiro de carvão e gordura. O nome do prato que todos estavam pedindo era beriani: um grande pedaço de pão, dentro dele um desses hambúrgueres e também um pouco da "massa" usada para fazer esses hambúrgueres. A "massa" não parecia ser carne moída, era mais fina. Sentei-me lá dentro em meio às conversas e me trouxeram primeiro um prato com um ramo de hortelã, metade de um limão e meia cebola crua. Depois, veio o beriani. A massa tinha um gosto de canela, com algo mais que eu nem soube identificar. Fiquei com nojo por um momento, imaginando todo o tipo de coisa que eu poderia estar colocando para dentro de meu estômago, mas depois me abstraí. Todos ao meu redor comiam alegremente, lubrificando a goela com uma bebida de iogurte salgado. De vez em quando, as pessoas notavam a minha presença e sorriam para mim. A minha retribuição automática: morder meu beriani e sorrir de volta, agradecendo o almoço. Depois, só muito depois, me falariam que a massa tinha canela, curry e outras especiarias. Mas a exata receita da iguaria permanece um mistério para mim. Deixo o restaurante e encontro um senhor de uns 60 anos que começa a puxar papo comigo em bom inglês. Se dizia professor da língua em uma universidade local e nos tornaríamos bons amigos em meu curto período em Isfahan. Lhe disse que minha viagem era econômica, mas mesmo assim ele insistiu para que fosse com ele visitar a loja onde trabalhava seu filho, um dos encarregados de continuar uma das tradições mais queridas do Irã, a das miniaturas. As iranianas não são esculturas, minibonecos ou casinhas como imaginamos ao ouvir a palavra miniatura. No Irã, miniatura é como se designam pequenos objetos decorativos com pinturas feitas com grandes detalhes e dimensões mínimas, com grande paciência por artesãos que desenvolveram e aprimoraram uma técnica própria. A tradição, como em tudo na cidade, também é antiga - teria sido iniciada no século XV. Isfahan é uma das capitais das miniaturas no Irã e o bazar da cidade talvez seja o melhor lugar no país para comprar esses objetos - caixinhas, porta-jóias, porta-alfinetes e até marca-páginas decorados com os minidesenhos. O filho do insistente senhor me recebeu com alegria em uma sala entupida de miniaturas nos intestinos do mercado. Suas caixinhas, ele me mostrou, eram feitas com palitos do tamanho de palitos de fósforo, colados um a um e moldados com calor para formar as arestas e superfícies do objeto. Os materiais usados variam: podem ser madeira, ossos de camelo. Com diversas cores, eles formam um mosaico, e em uma das superfícies da caixa é feito o minidesenho, o detalhe de mais difícil execução. O vendedor me explicou que há grandes mestres que passam as técnicas a seus aprendizes. Os aprendizes começam fazendo desenhos com detalhes menos visíveis, o que desvaloriza o preço final do objeto. Os pintores usam grandes lupas e pincéis com a espessura de pouco mais do que um fio de cabelo para fazer suas obras. Os temas variam, mas quase sempre há referências à própria história de Isfahan: o xá jogando polo na Praça Khomeini, ou em caçadas com seus amigos. "Isfahan é, antes de tudo, uma cidade das artes", me diz o senhor idoso, tentando me convencer a levar uma lembrança. "Miniaturas, tapetes, até nossos doces. É triste que você não aproveite isso". Lhe respondo que voltaria depois a procurá-lo para comprar uma lembrança, mas que por ora agradeceria se ele me mostrasse onde comprar bons doces. Vou precisar de energia para ver tudo o que preciso ver nesta cidade.
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