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Quinta-feira, 6/7/2006
Uma gripe e dois livros para distrair
Adriana Baggio

flor
Ilustra by Tartaruga Feliz

Passar o feriado de cama por conta de uma dessas indefectíveis viroses de inverno tem seu lado bom - por mais que seja difícil perceber. Ficar parada é praticamente um crime nos dias de hoje. Daí vem a doença e te derruba de nocaute no primeiro assalto. E você, indefesa, sabe que o melhor é aceitar e se conformar. Conformação - outra atitude que não combina com essa época tão ativa e pró-ativa, mas que é fundamental em um momento como esse.

Logo vêm à mente aquelas fábulas orientais sobre carvalhos rígidos que sucumbem às tempestades, enquanto os bambus se dobram e sobrevivem. Me rendi pacificamente ao ataque dos vírus e bactérias e deleguei as tarefas de lutar e contra-atacar aos meus anticorpos. Enquanto a batalha se desenrolava feroz nos meus brônquios, me distraí com a paisagem a partir do sofá da sala. De um lado, o mundo emoldurado pela varanda, em dias insuportavelmente ensolarados. Sol é um veneno para o corpo com gripe e para a mente obrigada a ficar quieta. Nessas horas, o melhor mesmo é um céu nublado, uma chuvinha fina. Quando a vista ou a posição se tornavam insuportáveis, deixava o sol para trás e redescobria a minha casa. Os livros na estante, as flores no jarro, os quadros na parede. Incrível como até uma sala comum pode conter novidades para seus próprios moradores.

Mas chega uma hora em que os estímulos visuais perdem a graça. Então, parti para os livros: hora de fazer a fila andar, de botar a leitura em dia. Peguei um volume com um título instigante: Putz! Virei a minha mãe!, de Sandra Reishus (Carpe Diem, 2006, 190 págs.). Todas as mulheres, secretamente, sentem algum receio de se tornarem iguais às suas mães nos piores aspectos delas. Um medo estimulado por aqueles comentários que os homens fazem quando querem nos ferir profundamente: "você está ficando igual a sua mãe!". De uma tacada só, eles conseguem atingir duas gerações da família.

Para que comentários maldosos masculinos, se uma mulher pode fazer pior? A contracapa e as orelhas do livro prometem receitas para nos libertarmos do estigma da herança materna. Mas não se deve dar confiança a esse tipo de proposta, não é mesmo? Logo no começo, percebo a farsa: como diria minha mãe, a autora é filha de chocadeira. Os casos que ela cita são patológicos. Os comportamentos descritos não são o normal entre mães e filhas, são as exceções! Sem falar na distorção de responsabilidades: se a filha vai mal na carreira, não arranja namorado ou vive infeliz pelos cantos, pode apostar que é culpa da mãe. Mesmo para um livro de auto-ajuda, passou dos limites. Também, esperar o que de alguém que agradece ao professor de jazz pelo seu desempenho como "escritora"? Ah, tenha a santa paciência! O lado bom é que essa obra me permite realizar o antigo sonho de citar a antológica Dorothy Parker: "este não é um livro para ser posto casualmente de lado. É para ser atirado longe, com toda a força."

Deixando mães e filhas de lado, sigo para as avós. As netas da Ema, de Eugênia Zerbini (Record, 2005, 176 págs.), é um romance com personagens femininas e conflitos idem. O fio da narrativa é conduzido por uma mulher de meia-idade, bonita, corajosa e bem-sucedida. Depois de um assalto, ela decide rever seus objetivos de vida e suas aspirações. Essas reflexões são passadas para o leitor através de monólogos interiores ou em diálogos com as amigas. Enquanto os diálogos são mais naturais, as conversas internas parecem trazer algo da formação acadêmica da escritora (mestre e doutora em Direito Internacional). Às vezes, ela perece estar dissertando, defendendo alguma idéia. Nesses momentos, utiliza termos e estruturas que destoam do restante da linguagem.

Um aspecto interessante do livro é a maneira como as personagens são chamadas. Ao invés de nomes, estereótipos, como "A-loira-muito-linda-de-olhos-gateados". As amigas-estereótipos são como exemplos de caminhos que as mulheres têm seguido em suas vidas. A divorciada e com filhos, a linda e sozinha, a mãe solteira que não precisa de homens, e por aí vai. Essas são as netas da Ema, a Bovary, personagem clássica de Gustave Flaubert. A explicação para a referência é feita pela narradora, em uma de suas reflexões pós assalto. As mulheres de hoje seriam como netas de uma mulher que era livre, de certa forma, mas cuja insatisfação foi sua perdição. Os objetivos e as metas de realização femininas atuais são diferentes, mas como diz a narradora, parece que algo ainda nos puxa para trás, para sonhos com príncipes encantados e famílias perfeitas. Ou seja, continuamos insatisfeitas.

As netas da Ema venceu a edição 2004 do Prêmio SESC de Literatura. A história inusitada e a forma diferente de "batizar" as personagens dão um ar de contemporaneidade ao livro. No entanto, algumas vezes o roteiro parece meio solto, sem ligação entre suas partes. Tem uma passagem da adolescência da protagonista, de forte apelo erótico e dramático. Isoladamente, é um bom trecho, mas se perde em função do restante. Parece que falta um pouco mais de tempo para contar a história, de laços que amarrem um segmento ao outro. Quando se chega ao final, é uma verdadeira surpresa. A sensação é de pisar em falso, de achar que vai encostar no chão e só encontrar o vazio. Terminar o livro é quase um tombo. Senti pena por ele ter acabado assim tão rápido, sem eu perceber.

Enfim, depois dessas leituras, de quatro dias de cochilos e de assistir a doze jogos de Copa do Mundo, os anticorpos parecem estar vencendo a batalha. Os vírus, bactérias ou seja lá o que for, estão batendo em retirada. Hora de voltar ao trabalho, de correr de um compromisso a outro, de extinguir todos os espaços vazios do dia. Os livros que não foram escalados vão ter que se conformar com o banco, pelo menos até chegar a vez deles. E se as coisas continuarem assim, daqui a pouco eles vão me fazer companhia novamente, em mais uma dessas viroses que insistem em nos colocar no nosso devido lugar.

Para ir além








Adriana Baggio
Curitiba, 6/7/2006

 

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