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Quinta-feira, 29/6/2006
As noites insanas de Zizi Possi
Márcio Seidenberg

"Vai rolar, sim!", escreveu, entusiasmada, Zizi em seu perfil do Orkut, confirmando as três apresentações no palco intimista do Sesc Pompéia, no início de junho. Bastou o breve recado para que admiradores de Porto Alegre, de Salvador, do Rio, de Recife e de outras cidades se juntassem aos de São Paulo em busca dos disputados ingressos a R$ 20. Não é sempre essa euforia, não. É que, desta vez, quem acompanha a carreira da artista, sabia: o show seria muito, muito diferente de tudo o que se viu e ouviu nos últimos 8 anos. Zizi, sabiamente e com sobriedade, radicalizou, ao classificar de "insanas" as noites de música que estava preparando...

E quanto significado e quanta importância tem a insanidade para a sempre ponderada, sofisticada e perfeccionista Zizi Possi, que, mesmo podendo desfrutar de irrestrita liberdade artística, nos últimos trabalhos vem se dedicando a projetos de conceito fechado, que exploram, em profundidade, diferentes facetas de seu universo musical. O mais recente deles, o CD/DVD Pra Inglês Ver e Ouvir, traz clássicos de diferentes épocas e estilos do idioma dos Beatles. Em temporada no Teatro Frei Caneca, no ano passado, o show, caríssimo, manteve a intérprete passeando por um repertório em inglês inédito em sua voz - a exceção de "Yesterday", do CD anterior, Bossa, que, apesar de inspirado no movimento idealizado por João Gilberto, permitiu à cantora transitar por parte de sua obra nas poucas apresentações da turnê. Liberdade maior houve em 1999, com Puro Prazer, que, todo em formato piano-e-voz, revisitou músicas mais recentes, depois de 3 anos em que Zizi só cantara em italiano, graças ao bem-sucedido Per Amore, profundo mergulho da artista em suas raízes, na herança familiar e nas canções napolitanas que o avô cantava.

Pois bem, agora Zizi finalmente está às voltas com sua "alma de cantora", em viagem por um repertório que sublinha a trajetória que começou em 1978. Três shows em que o esmero musical, a partir da combinação do violoncelo e violões de Lui Coimbra, da percussão de Guello e do piano e teclados de Jether Garotti Júnior serviu de poderoso instrumento para a voz da intérprete. Ainda que os roteiros, diferentes para cada noite, privilegiassem a triologia acústica - os álbuns Sobre Todas as Coisas (1991), Valsa Brasileira (1993) e Mais Simples (1996) -, que consagrou Zizi como uma das grandes vozes da MPB, foram as canções da década de 1980 que mais surpreenderam.

Zizi pop, Zizi diva
Ela tinha 25 anos quando gravou "Caminhos de Sol" (Hernan Torres/ Salgado Maranhão) com viola 12 cordas, baixo e bateria. Descobriu, 25 anos depois, uma leitura mais suave e singela, somente ao piano preciso de Jether. O mesmo para "Toda Uma História" (Luiz Avellar/ Zizi Possi), hoje mais disciplinada e adaptada ao formato acústico do trio. Teve também a junção de "O amor vem pra cada um" (Beto Fae) e "Asa Morena" (Zé Carapídia), com percussão, piano e violão - um clássico até hoje, ainda que o público, lá no início da carreira da artista, fosse só "Caminhos de Sol": "as pessoas não queriam ouvir a música que eu tinha para cantar. Me lembro que eu parei e falei: gente, vocês precisam me dar a oportunidade de mostrar uma coisa nova. Eu acho que vocês vão gostar dessa música", relembra ela, numa entrevista à rádio Jovem Pan, sobre quando mostrou "Asa Morena" pela primeira vez.

"Nunca" (Lupicínio Rodrigues) é outra que ficou mais envolvente na versão madura. Zizi esticou os tempos da música, dividiu o verso "pra que eu viva", para depois completar "em paz", além de inserir uma citação de "Yesterday" ao final. "É muito interessante cantar com a maturidade de hoje [essas músicas] porque é outra pegada, é outro jeito de dividir, é outra emoção", refletiu, durante o show de reabertura do Scalla, no Rio de Janeiro, há dois anos. Foi quando ela trouxe ao palco algumas músicas antigas, anteriores a Sobre Todas as Coisas, o disco da "virada" artística da intérprete, que, a partir dali, passou a buscar um repertório mais coerente e autêntico consigo mesma, como ela define. Mas o que dizer de toda a obra construída antes e durante os anos 1980?

Parecia que, ao valorizar o apuro musical dos trabalhos acústicos, Zizi se desvinculava do lado supostamente "brega" dos dois últimos discos da fase pop, de quem o hit "Perigo", uma das músicas mais executadas daquela época é fruto, assim como "Noite" (Nico Rezende/ Jorge Salomão), que, numa atitude "insana", foi recriada para o show do Sesc. Saem a guitarra e o baixo da gravação de 1987; entram piano e violoncelo. E Zizi arrancou aplausos saudosistas da platéia.

A verdade é que as músicas, mesmo as mais recentes, crescem no palco. E como crescem... Um exemplo é "O samba e o pandeiro" (Jackson do Pandeiro/ Ivo Martins), em que a cantora vai imprimindo o tom, retardando e acelerando os versos e Guello respeitando a velocidade na percussão, em sintonia. Ou ainda em "Explode Coração", em que Maria Bethânia expande-se e que Zizi canta contido e baixinho, sufoca e espreme ainda mais os versos pungentes de Gonzaguinha. Ela tem o poder de transformar as canções.

E Zizi é também uma cantora que se transforma. Mas uma característica sua manteve-se linear: o domínio cada vez mais definitivo de voz e interpretação. Chico Buarque já reconhecia o talento da artista quando a convidou para gravar com ele "Pedaço de Mim" em 1979; Ivan Lins, também, ao oferecer a canção "A Força", uma preciosidade resgatada recentemente pela compilação Pérolas Raras; Gilberto Gil compareceu com "A Paz" e "Meu Amigo Meu Herói", entre outros compositores.

Estandarte e liberdade
Zizi parece ter recuperado a alegria de poder cantar sua história. Para enaltecer esse momento, depois de uma depressão que a afastou por 4 anos dos discos, o final do show do Sesc foi apoteótico. Primeiro com os versos de "Ar Puro" (Fátima Guedes) à capela, depois a fusão com a marcha "Porta Estandarte" (Geraldo Vandré/ Fernando Lona), verdadeiro hino de celebração: "eu vou levando a minha vida enfim/ cantando e canto sim/ e não cantava se não fosse assim/ levando para quem me ouvir/ certezas e esperanças para trocar/ por dores e tristezas que bem sei/ um dia ainda vão findar". De longe, a mais bonita música das noites, que terminaram com a luxuosa interpretação para "O que é o que é" (Gonzaguinha) e "Juízo Final" (Nelson Cavaquinho/ Élcio Soares).

Talvez os 50 anos, completados em março, tenham trazido essa liberdade irrestrita e a possibilidade de experimentar sem preconceitos, sem amarras. Para a cantora que, ao longo dos 28 anos de carreira, conquistou a maturidade que lhe autoriza qualquer viagem, por que não iluminar com boa dose de insanidade seus próximos vôos?

Márcio Seidenberg
São Paulo, 29/6/2006

 

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