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Sexta-feira, 28/7/2006
Conselhos Místicos Ao Jovem Escritor
Ricardo de Mattos

Semanas atrás acessei a caixa de entrada do correio eletrônico e deparei-me com a mensagem cujo título encabeça a presente coluna. Abri julgando-a encaminhada pelo corpo editorial do Digestivo Cultural. O remetente estava oculto e minha formação empírica não me permitiu descobrir algum dado quanto à origem do texto. Não havendo referência de retransmissão, os sistemas de proteção não acusando perigo, e tratando-se dum texto simples sem sequer um link, optei por lê-lo. Não consigo atinar com a fonte. Visitei inúmeros sites e cadastrei-me em vários, de forma que eu precisaria perquirir sobre anos de acesso para desvendar o mistério. Não afasto a hipótese de ter sido enviada por engano por algum membro daquela sociedade secreta que cultua como sacros os livros de Castaneda e que reagiu negativamente a uma antiga coluna. Obtenho esta inferência pelo fato do meu nome ter sido citado num contexto não muito favorável.

Houve tempo em que se perfumavam as cartas - mormente as trocadas entre enamorados - para que o cheiro revelasse a origem e despertasse sentires. Tal recurso deve ter sido útil para combater enganos, dês que duas namoradas não usassem a mesma essência. Sequer com este recurso pude contar. Tentei aplicar o princípio ao e-mail desconhecido e aproximei da tela a minha labradora Carmela, porém sua reação limitou-se à tentativa de roubo do mouse. Si publico o texto é com a intenção primeira de que o autor - ou autores - revele-se ao reivindicá-lo. Dadas a ausência de introdução e a numeração dos itens, suspeito que seja a conclusão de conversa desenrolada anteriormente. Eis o texto:

I - Apresentação Pessoal & Criação do Mito

1. Cometa de propósito um monte de extravagâncias e faça com que todos percebam. Elas poderão ser citadas numa futura biografia, então você ganhará uma aura de pitoresco e será mais lido. No preparo de uma personalidade "biografável", tente influenciar pessoas próximas para que, sem perceber, elas acabem ajudando a divulgar seus atos. Certamente elas serão procuradas para depoimentos. Eventualmente, procure um amigo durante a tarde e chore ao conversar sobre um problema pessoal. Ou apenas chore, sem falar nada. Pela noite, tente ser visto em plena alegria por este mesmo amigo. Se você fizer as coisas corretamente, ele comentará que sua alegria é uma forma de abrandar uma angústia interna que o consome aos poucos. Como resultado, seus textos adquirirão um sentido oculto e instaurar-se-ão debates diversos. Não duvide do breve surgimento das teses de mestrado.

2. Cultive hábitos estranhos como colecionar os pés direitos dos pares de calçados, esponjas de limpeza ou potes de talco. Frustrada a carreira literária, sempre aparecerá quem compre a tralha. Faça misturas absurdas de comida e quando questionado, responda com outra interrogação: "Por que tenho que ser igual a todo mundo?".

3. Saiba ser fotografado. Jamais tire uma foto de si mesmo com câmeras digitais, mas esteja atento quando aparecer um fotógrafo por perto, para que você possa assumir o tipo que escolheu para si. Não seja como estes escritores burgueses que se recusam a ser fotografados, com a desculpa de não querer desviar a atenção da obra para a vida pessoal. O que é a obra literária de alguém si desvinculada de sua vida pessoal? Nada! Metade do interesse por um livro perde-se quando não se sabe a preferência sexual do escritor, sua regularidade no pagamento de contas, suas relações familiares, os vícios que padeceu. Quem não releu
Dom Casmurro com outros olhos após saber que Machado de Assis era epilético?

4. Não tenha posicionamento espiritual, mas critique a Igreja Católica pelo tempo da Inquisição e por proibir o sexo antes do casamento. Principalmente pelo número de pessoas que deixam de fazer sexo acatando esta proibição.

5. Politicamente, seja sempre de esquerda, mesmo que não saiba direito o que é ser de esquerda, de centro, de direita, de cima, de baixo ou de diagonal. Aceita-se que um escritor seja de centro, mas ao iniciante é recomendável ser de esquerda. Se realmente mudar, alegue amadurecimento político e filosófico. Nunca se diga de direita, nem brincando. Escritores velhos, sim, podem fazer este tipo de graça, você não.

6. Esquive-se ao máximo das questões polêmicas. Si todavia questionado, comece sempre suas respostas com "nada contra" e termine com "entende?". Modelo: "Nada contra os adeptos da riparofilia, mas esta não seria a minha primeira opção de prazer, entende?". Outro: "Nada contra os riparófilos, mas acho que a sociedade deve ser mais aberta para as outras formas de prazer, entende?".

7. Cuidado com o nome. Si seus pais foram infelizes ao escolhê-lo, troque-o ou escolha outra atividade. "Hibisco ao Luar Albuquerque" não é, definitivamente, um nome pelo qual se tenha respeito. Não adianta elogiar, desculpar seus pais ou querer auto-afirmar-se alegando que gosta do nome: troque! Si for muito comprido, encurte-o. Si comum, não é proibido distinguí-lo, mas sem a vulgaridade norte-americana. José Ramos Tinhorão foi uma opção excelente. José "O Matador" da Silva não merece atenção.

II - Leitura

1. É o item mais trabalhoso. A rigor, nem deveria constar destes conselhos, pois são os outros quem devem ler o que você produz. Você é o criador. Contudo, é bom demonstrar certa humildade e atenção aos que vieram antes. Até seu aparecimento, eles foram famosos. Além disso, quando sua obra for adaptada pela Globo, valerá o esforço. Eis a minha sugestão:

A - Literatura Nacional da Antiguidade. Um título de Graciliano Ramos à sua escolha. Reveja suas sinopses do pré-vestibular - os "resumões" - sobre Machado de Assis, mas apenas o suficiente para opinar se Capitu traiu Bentinho ou não.

B - Literatura Nacional Contemporânea. Leia livros da sua geração, mas não muitos. Você deve conservar seu próprio modo de ver as coisas. Um livro de Clarah Averbuck, um de Marcelo Mirisola e um do Paulo Coelho, na base de um por semestre, preenchem ano e meio de leitura satisfatória e estimulante.

C - Literatura Estrangeira: dois livros de Kafka encerram qualquer discussão sobre a leitura e o bom gosto do jovem escritor. Si quiser caprichar muito, inclua algo de James Joyce. É muito importante, aliás importantíssimo, que se pesquise os nomes mais citados e busque-se dois ou três dados sobre eles. Lendo o nome "Dostoiévski", saiba que ele era russo, viveu no século XIX e escreveu vários livros.
O Idiota é um livro bem conhecido dele, grosso e com o título fácil de lembrar.

2. Jamais, atente bem, jamais diga que não leu um livro. Mesmo que seja citado um texto sagrado do Congo Medieval, recorra à expressão facial de quem tenta recordar-se de algo lido há anos. Teça comentários como: "Realmente, o cunhado do meu tio-bisavô possuía a obra, mas li há tanto tempo que os detalhes escapam-me". O simples fato de você ter lido a obra "há tanto tempo" conferir-lhe-á ares de erudito de longa jornada e ser-lhe-á perdoado certo
esquecimento.

3. Atente inclusive para a questão do gestuário. Quando comentarem alguma coisa sobre qualquer livro, de qualquer assunto, mantenha o olhar fixo num ponto e balance a cabeça vagarosamente. Depois comente: "Também percebi isso". Seu interlocutor ouvirá aquilo que quer e retribuirá elogiando sua inteligência.

4. Si tiver tempo e disposição, emporcalhe-se de teoria literária. Jorge Luis Borges, um argentino, disse que dava preferência aos textos originais e deixava de lado os livros de teoria. Mas ele podia se dar ao luxo porque não tinha muito o que fazer e também foi descoberto recentemente seu problema com a bebida. Como já foi escrita muita coisa, é melhor ir pela teoria e receber já mastigadas as informações necessárias sobre as obras dos outros.

III - Cultura

1. Veja um filme iraniano por ano. Eu mesmo já vi alguns e gostei. São histórias simples: o menino que vai a pé de casa até o centro da cidade; a menina que quer um peixe dourado mas a mãe não pode comprar; o rapaz que troca uma bicicleta por um par de sapatos para ir a uma festa... Não só ensinarão você a aproveitar em seus textos as coisas simples da vida, como conferir-lhe-ão uma aura instantânea de intelectual sério e profundo. O único problema é você precisar aumentar a quantidade do que escreve, pois intelectuais sérios e profundos escrevem mais. No mais, uma ida mensal ao cinema, novelas diariamente e algumas reprises de
Seção da Tarde. É um subterfúgio, sei disso, mas as pessoas capazes de compreender isso não têm nenhuma voz ativa. Um Ricardo de Mattos pode perceber o logro e atiçar a cachorrada contra você ou chicoteá-lo de cima do cavalo. Mas quem é Ricardo de Mattos?

2. Critique duramente a cultura popular. Não foi feito na Europa nem nos Estados Unidos, então não presta. Si alguém elogiar "A Majestade, o Sabiá" cantada por Jair Rodrigues, comentar favoravelmente a interpretação de "Boneca Cobiçada" por Pedro Bento e Zé da Estrada, ou ainda contar o quanto gostou da apresentação de um grupo de Moçambique, saia de perto sorrindo e comente entredentes: "Quem é este ridículo?".

IV - Escrita

1. Escreva sempre, ainda que sem vontade. Si o leitor perceber seu tédio, ele terá a oportunidade de acompanhar a evolução do seu raciocínio e uma hora acabará apreendendo a mensagem que você transmitiu mesmo sem perceber.

2. Escreva livros pequenos, com o máximo de cem páginas por vez. Você quer ser escritor num país de pouca leitura, então faz-se necessária a economia de palavras. Não queira inventar um calhamaço maior do que isso, pois as próprias editoras não publicarão um desconhecido verborrágico. O que vende mais, os livros de banca do tipo
Sabrina ou os do Diogo Mainardi?

3. Ao escrever, não invente demais. O leitor brasileiro tem a mente plana. Se for um romance, crie dois ou três contratempos para um casal, mas una-os ao final. Se não unir, a Maria Adelaide do Amaral une e o
trabalho dela que será considerado. Se for muito ousado, recorra a um casal homossexual, mas seu público diminuirá e, por conseqüência, a venda e sua porcentagem sobre o preço de capa. O importante é vender bastante logo no começo para que no futuro admita-se o risco de uma obra um pouco mais caprichada - com mais de cem páginas.

4. Escreva do jeito que lhe vier à cabeça, mas sem muito esmero. Aproxime-se ao máximo da linguagem utilizada na internet. No lugar de um pomposo "Você está aí?", recorra a algo inteligível como "vc tah aih?". O importante é passar o pensamento, a idéia, e enfeitar demais acaba atrapalhando a comunicação. Sendo simples, pode-se ocupar páginas e mais páginas com um parágrafo apenas, ou até mesmo com uma só frase, e não prejudicar a relação escritor/leitor. Ou, falando, você usa parágrafos, frases pontuadas, pronomes e outros incômodos? Monteiro Lobato e Mário de Andrade quebraram regras gramaticais e de ortografia. João Ubaldo Ribeiro escreveu
Sargento Getúlio dando a impressão de alguém falando e pensando. Em última análise, eles estavam abrindo caminho para você. Vivemos numa democracia: se eles puderam, você também pode.

5. Claro que si sua atenção for voltada à poesia, metade desta trabalheira toda pode ser desconsiderada. Publique um livro em que cada página traga apenas um título, mas sem o poema correspondente. Conclua filosoficamente que tudo se encerra no Nada e sua coroa de louros estará assegurada. Pessoas reunir-se-ão para fumar cigarrilhas de cravo e discutir o que você não escreveu.

V - Divulgação e Entrevistas

1. Caso queiram entrevistá-lo, nunca vá ao primeiro dia e horário combinados. Faça-se solicitar. Na primeira vez, desligue seu telefone celular durante o dia inteiro e ligue desmarcando em cima da hora. Adie para, no mínimo, uma semana. Não seja tonto de faltar também desta vez, porque o prejuízo será seu. Vá, mas chegue com duas horas de atraso, com os olhos inchados e não comente nada. Se um juiz de Direito pode atrasar duas horas e desmaiar durante a audiência, por que não você, que é o juiz da sociedade?

2. Esta regra tem uma exceção. Suplique uma entrevista ao Jô Soares. Envie
e-mails diariamente até receber uma resposta. Se negativa, envie dois por dia. Nessas horas o amor próprio não deve ser um obstáculo pequeno burguês. Envie junto uma sugestão de pauta, assinalando as perguntas imprescindíveis a fazer. Alegue que se você ficar famoso, ele será apontado como o primeiro a reconhecer seu talento. Peça para cumprimentar a banda.

3. Apresente-se sempre como escritor, mesmo flagrado em meio a uma passeata pela destituição do síndico do prédio fronteiro. Antes de autorizar eventual uso da imagem na televisão, confirme se é o termo "escritor" que aparecerá sob seu nome.

4. Envie exemplares de seus livros para o Daniel Piza, Julio Daio Borges e outros editores culturais dos grandes jornais. Tente conversar pessoalmente com eles. Espere-os nas portas dos prédios onde trabalham. Siga-lhes os carros. Aborde-os nos restaurantes, mas aguarde que façam o pedido e comecem a comer, pois assim não irão embora e ouvirão enquanto mastigam. Descubra os endereços residenciais e espere-os no portão. Envie-lhes
e-mails e insista em pedir resposta.

VI - Conclusão

São regras complexas, trabalhosas e minuciosas. Lembre-se, jovem escritor, de que o lugar do "Grande Romance Brasileiro" está vago. Quem o conquistar, poderá concorrer a outro, o de "Grande Romance Latino Americano". Ainda que se esgotem as finanças da família com a promessa de restituição, seu reconhecimento é futuro mas iminente, de forma que o estrago causado pela ociosidade logo será reparado. Todo esforço será pequeno ante a satisfação de se alcançar um grande objetivo. Agora, mexa-se e acesse seu
blog!

Ricardo de Mattos
Taubaté, 28/7/2006

 

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