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Quarta-feira, 12/7/2006 Sala de aula é o mínimo Ana Elisa Ribeiro A universidade, especialmente a pública, se sustenta sobre três famosos pilares: o ensino, a extensão e a pesquisa. Todo mundo que esteve numa universidade, especialmente se pública, sabe disso. E se ficou esperto, pôde entrar em um projeto de extensão ou de pesquisa. Isso quando não estava em sala de aula, ouvindo os ensinamentos de pesquisadores por vezes internacionais. Mas a universidade, especialmente a pública, é intrigante. Resiste, embora nem sempre passe ilesa, a todos os atentados de presidentes e ministros, acomoda tanto os picaretas quanto os gênios (mais uma discussão sobre os gênios) e apresenta tanto os melhores quanto os piores professores. Quem esteve numa universidade, especialmente se foi pública, sabe que teve aula com aqueles caras que eram as referências bibliográficas da área. Quase babou quando o doutor Fulano entrou em sala e proferiu as primeiras palavras. Palavras-chave, palavras mágicas. Mas esse feliz aluno também teve as piores decepções de sua vida quando percebeu que, embora o doutor cientista fosse um gênio, era péssimo professor. Digo no sentido de ter a famosa "didática", fazer-se entender, explicar, esclarecer. Bem, não deve ser à-toa que a palavra aluno (a + lumno) já quis dizer, em latim, "sem luz". E se não chegar ninguém capaz de esclarecer, fica complicado. Por outro lado, a concepção do que seja um aprendiz não passa mais por aí. Ninguém chega na escuridão para ser "acendido" na escola. Todo mundo traz seu tanto de luz. Pelo menos em alguns lugares. Talvez por isso o aluno de escola pública alimente, desde cedo, o famoso "sevirol" (do verbo "se virar"). Se o estudante não se move, a montanha fica lá, imensa, enorme, no mesmo lugar. Mas não sejamos injustos. O problema não pode estar só de um lado, como de resto nada está. Também o aluno, adulto, tem lá sua parcela de responsabilidade nessa empreitada longa e difícil que é aprender, estudar, compreender, criticar. É intrigante que o aluno de universidade pública se sinta livre, já que não paga mensalidade, para passar quase o tempo todo jogando sinuca no Diretório Acadêmico. Por outro lado, é nessa universidade que se encontram as próximas referências bibliográficas. Se a turma tem 20 alunos (só mesmo uma universidade pública para trabalhar com esse mínimo contingente), uns 2 talvez se tornem grandes profissionais e pesquisadores. Dos outros 18, é melhor não detalhar. Tanta coisa pode acontecer. Tantas outras coisas não acontecerão. Mas o que mais interessa não é a sala de aula, como de resto nunca é. O que interessa é o que se faz a partir dela, paralelamente a ela, de vez em quando, dentro dela. Só de vez em quando. O aluno que ficou esperto e entrou num programa de Iniciação Científica pode ter descoberto como o professor doutor Fulano é, na vida real. Como se trabalha em pesquisa? Como funciona esse negócio? Como se conduz um experimento? O que e quem está envolvido nele? Para que se faz pesquisa? Métodos, metodologias, sistematização, introdução, justificativas e conclusões. Resultados e discussão dos resultados. Artigo. Outro caminho é a extensão. Com uma nota mais social, é nessa atividade que a universidade oferece seu braço à comunidade externa a ela. É pela extensão que o conhecimento produzido dentro da instituição pode vazar para a cidade, o estado, o país, o mundo. É pela extensão que o estudante presta serviço para a sociedade. E, pode acreditar, é um dos trabalhos mais bacanas que a universidade pode fazer. Atendimento jurídico, atendimento médico e odontológico, farmacêutico, veterinário. Fazer orçamento doméstico, tratamento de idosos, línguas estrangeiras, alfabetização de presos, comunidades isoladas, incentivo à leitura. Tudo de graça. É a universidade pública. Porque ela é pública. Um dos maiores projetos de extensão da universidade pública em Minas Gerais, o "Quem conta um conto, aumenta um ponto", levava os bolsistas para o Vale do Jequitinhonha, região muito conhecida pela pobreza material e pouco conhecida pela riquíssima cultura, e tratava de gravar as histórias dos contadores de "causos" mais respeitados da região. Eram famosos Joaquim, Robério, Paiada, Neném, dona Ana Benzedeira, Francisco e Abel Tareco. Esses são os nomes de que me lembro. Cada um deles contava lá umas tantas histórias da tradição oral popular e eram muito requisitados nas rodas de fogão a lenha ou de fogueira. Tinham em torno de 80 anos de idade e a força de meninos. A memória era de elefante. O projeto de extensão tinha o objetivo de fazer com as histórias do Vale o mesmo que Grimm e Perrault fizeram com os contos na Alemanha e na França. Coletar, registrar, manter. Com essas histórias estava nosso imaginário, nossa crença, nossa sabedoria, nossa inteligência. Entre uma história e outra, cada contador tecia comentários, morais de história, conclusões. Cada um deles tinha seu jeito de contar, suas vozes, sua atuação. Solenes ou nada, eram artistas. E enquanto suas memórias trabalhavam, era importante saber que não eram alfabetizados. Dizia Sidney: "Meu pai era muito pobre e a gente foi criado no mato. Nasceu lá no mato, criou lá pelo mato. Então eu não tive estudo. Que se eu fosse gente nascida no meio de gente, eu seria gente também. Mas analfabeto não dá nada. Não tenho estudo nenhum. Quer dizer: tem uma vantagem aí. O homem, quanto mais atrasado nas letra, mais avançado na treta". "Seu" Sidney sabia das coisas. Embora ele nem se pensasse como gente só porque não sabia ler, tinha lá sua parte de razão, muito embora "treta" não fosse coisa só de analfabeto. E embora não dominassem as técnicas de ler, sabiam que valor poderia ter um livro. Ou talvez justamente por não serem alfabetizados, tinham naquele objeto uma espécie de mística. Dizia Neném: "Eu escrevo muito mal. Mas eu tiro lá pelo livro, que não está comigo. Quando está, aí é muito fácil, a gente pega muito caso. Lá em casa tem um livro, que fica lá na roça com o velho meu pai". Ter o livro, guardá-lo, mesmo quando é apenas um, deixá-lo sob a guarda do mais velho, emprestá-lo, devolvê-lo no mesmo lugar. As honras de ter um livro. Era disso que Neném falava quando se referia ao livro da família. E iam contando histórias. "Se eu continuar a contar caso assim, a noite é pequena para mim!", dizia o mesmo Neném. E a noite ficava minúscula, porque cada participante da extensão tinha a sensação de ter entrado noutra história, noutro lugar. E tudo isso era muito mais esclarecido e esclarecedor do que as salas de aula, nas quais doutores-referência-bibliográfica falavam por uma hora e quarenta, com menos interação do que um joguinho de videogame. Vai entender... Então não é só a universidade pública que faz nascer um pesquisador, um professor, um profissional. É a gama de possibilidades que ela oferece, a inserção que ela tem na sociedade, mesmo que não pareça, e é o tipo de aluno que se preocupa em saber, mais do que com engolir. A universidade particular será um capítulo à parte. Não as PUCs, que são ainda outro capítulo, mas as outras... Ana Elisa Ribeiro |
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