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Quinta-feira, 20/7/2006
O amor e as mulheres pelas letras de Carpinejar
Adriana Baggio

Neste nosso mundo repleto de estereótipos e situações-clichê, a mais comum, quando se fala em relação homem-mulher, é a pretensa dificuldade que eles têm de nos entender. Ou a complexidade da lógica (ou falta de) do comportamento feminino. Aliás, de vez em quando rolam umas piadinhas ótimas na internet sobre isso. Tem aquela da divisão do cérebro, outra com diagramas e descrições das mulheres feitas por engenheiros, analistas de sistemas, etc. Até propaganda já foi feita com esse mote. Não sei se vocês lembram de uma que mostrava vários homens desfiando as contradições das nossas atitudes. No final, eles diziam que amavam as mulheres mesmo sem conseguir entendê-las. Se não me engano, era um comercial dos produtos alimentícios da Santista.

Que homens e mulheres são diferentes, até a ciência já admitiu. Mas daí a dizer que somos muito complicadas e difíceis de entender, é mais uma daquelas lendas urbanas, daqueles mitos que se perpetuam por atender aos interesses de algumas pessoas (homens e mulheres). Antigamente, pode até ser que fosse assim. Tudo que se falava ou escrevia sobre as mulheres partia dos homens. Portanto, eles tinham razão em dizer que não nos compreendiam. Achavam que a mulher era assim, e quando chegavam perto de uma, descobriam que era assado. Como eram eles que mandavam em tudo mesmo, pra que se esforçar em entender? Hoje em dia é diferente.

Explicações sobre os sentimentos e a lógica femininas estão em todos os lugares, das revistas às temidas conversas sobre a relação. Portanto, essa coisa de um não entender o outro é mais por preguiça do que por falta de informação. Mas como ainda rende boas pautas, fica difícil desfazer esse mito. Uma das que não se apegam ao clichê é a que poderia mais lucrar com ele. A hilária Maitena, cartunista e humorista argentina, já vendeu muitos livros e tirinhas para revistas explorando as peculiaridades da personalidade feminina. Porém, até ela é contra essa história de que, pra saber lidar com a gente, precisa de manual de instrução. Em entrevista à Carla Rodrigues, publicada no NoMínimo, ela diz: "não me identifico com a idéia de que o universo feminino é tão especial, não gosto quando escuto mulheres dizendo que somos seres difíceis de compreender, como uma fada que flutua em suas intuições. Não concordo com essa idéia, que me parece equivocada, que afasta homens e mulheres porque cria um mistério feminino que provoca medo no homem: medo do desconhecido, da distância, desse mistério insondável. Creio que nós mulheres não somos tão misteriosas".

Pois bem, mesmo que a gente sinta um certo prazer em perpetuar essa lenda (às vezes ajuda a justificar algumas decisões), existem homens que não se acanham nem desanimam diante do indecifrável. O exemplo mais óbvio é Chico Buarque. Quantas mulheres não sentem uma profunda identificação ao escutar "olhos nos olhos/ quero ver o que você diz/ quero ver como suporta me ver tão feliz"? É a vingança, a superação de um amor perdido, um gostinho que talvez tenha sabor único para as mulheres. Mas queria polemizar dizendo que, perto do Fabrício Carpinejar, o Chico é pinto em relação à compreensão dos meandros alma feminina.

Para entender o que eu digo, dá uma olhadinha no blog dele ou nas crônicas do livro O amor esquece de começar (Bertrand Brasil, 2006, 286 págs.). Você já viu algum homem falar das e sobre as mulheres com tanta generosidade, empatia e admiração, sem que isso seja um meio para outros fins? (Nada contra os homens que usam desse subterfúgio apenas para tentar comer alguém. Acho até que a intenção é louvável e deve ser incentivada. Afinal, quantos alunos não aprendem a matéria ao preparar a cola para a prova?) Alguns podem argumentar que fica mais fácil para o Chico e o Fabrício entenderem as mulheres porque eles são poetas, e poesia é algo que não existe no dia-a-dia, no choro do bebê, no cocô do cachorro, na pia cheia de louça para lavar. Mas o Fabrício, além de poeta, também é pai e marido e, mesmo assim, parece ser um gentleman com a Ana.

Não ganhei jabá para falar bem da família Carpinejar e nem conheço o casal pessoalmente. O que eu sei da vida deles você também pode conferir facilmente. Está no blog, está nas crônicas de O amor esquece de começar. E, para mim, esse é um dos principais méritos do livro. Evidente que restringir a qualidade do trabalho do Fabrício Carpinejar à sua sensibilidade e capacidade de enxergar as coisas do ponto de vista feminino seria injustiça. Porém, juntando a sensibilidade ao desprendimento com que ele fala da própria vida, e mais os traços de poesia com os quais tempera a prosa, percebe-se que o bom do seu texto é justamente a proximidade com a alma das pessoas - mulheres ou homens.

O Fabrício cronista consegue estar próximo do leitor ao mesmo tempo em que preserva as características de uma boa literatura. Os temas podem ser comuns e prosaicos, mas a maneira de escrever sobre eles é inteligente, original, engraçada, irônica. Em O amor esquece de começar, a única coisa que me incomoda um pouco são os textos nos quais o limite entre e prosa e poesia é meio difuso. Tentava explicar para mim mesma o que exatamente não dava liga, quando a resenha publicada no jornal literário Rascunho me ajudou a identificar. O subtítulo do texto de Moacyr Godoy Moreira diz: "primeiro livro de Carpinejar como prosador é mistura de crônica, confissão e manual de sobrevivência".

Pimba! A minha implicância foi com os textos que têm essa cara de "manual de sobrevivência". Não por causa dos conselhos, e sim pela forma. Frases uma embaixo da outra em um procedimento de acoplamento, como se fossem versos, e metáforas bastante inusitadas, formam um esquema que se repete em várias crônicas. Lembram um pouco os textos desses sites de relacionamento que as pessoas enviam umas às outras por e-mail. Nada contra, alguns são ótimos. Apenas acho que, no livro de Carpinejar, eles destoam do conjunto, talvez por não parecerem naturais no contexto, ou por apresentarem uma certa "crise de identidade" formal.

Sensibilidade, amor à mulher e à família, coragem de abrir o coração, não fazem de Fabrício Carpinejar um escritor meloso ou água com açúcar. Ele é crítico e realista, ao mesmo tempo em que ri do mundo e de si mesmo (o episódio em que uma moça pergunta se a pretensa deformação - que só ela vê - no rosto dele foi um acidente, é uma pérola de humor negro). Além de tudo, o moço parece muito sábio, muito conhecedor das coisas da vida. Talvez por isso seu nome seja considerado um dos mais importantes da literatura hoje. A nossa época é a da proximidade e da interação, da coragem de resgatar valores - ou de se desprender completamente deles. O poeta e cronista gaúcho transita bem nesse universo, com a vantagem de ter um talento todo especial para escrever e refletir sobre ele.

Nota do Editor
Leia também "Novos autores: literatura, autonomia e mercado".

Para ir além





Adriana Baggio
Curitiba, 20/7/2006

 

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