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Quarta-feira, 9/8/2006
Todo o tempo do mundo
Vitor Nuzzi

O Bom Demais era um bar na Asa Norte, em Brasília. Eram os anos 80. Morei lá muitos anos depois - queria ter conhecido esse lugar, onde cantaram, entre outros, Cássia Eller, Zélia Cristina (que depois viraria Duncan), os ainda meninos Raimundos. E até Renato Russo, que um dia, já meio alto, arrebatou o microfone e cantou músicas dos Beatles (o relato está no bom livro de Ana Claudia Landi e Eduardo Belo sobre Cássia Eller, Apenas uma Garotinha). Renato adorava o álbum Let it Bleed, dos Stones, ouviu muito rock progressivo e tomou seu primeiro porre quando Sid Vicious, o vocalista do Sex Pistols, morreu. Nem imagino como ele, Dado Villa-Lobos, Renato Rocha e Marcelo Bonfá se conheceram, mas com aquele encontro o rock nacional ganharia um toque de qualidade e vigor além do pop tão típico da época.

Pausa para um fim de tarde qualquer em 1986, avenida 23 de Maio, São Paulo. No rádio do carro - parado em um típico trânsito infernal - toca uma balada contando a história de um casal, ela mais velha, com jeitão intelectual, e ele meio bobão. Pergunto ao motorista quem estava cantando. Era Legião Urbana, do qual até aquele momento, confesso, nunca tinha ouvido falar. O bobão, na verdade, era eu.

No dia seguinte, vou atrás do LP. E fico sabendo que a banda nem era tão nova assim. "Aquele gosto amargo do teu corpo/ Fico na minha boca por mais tempo" eram os primeiros versos do disco. Não era rock puro, mas também não era pop, muito menos MPB. As letras tinham angústias adolescentes e conflitos adultos. E um olho na realidade brasileira. Não era a frivolidade da Blitz, nem a energia do Ultraje a Rigor, duas bandas que eu gostava (e ainda gosto) de ouvir. Lírico e crítico ao mesmo tempo. Arranjos aparentemente simples, batida seca de bateria. Letras mais elaboradas. E na quarta faixa, aquela música que eu ouvira no carro. Com a dúvida que não foi resolvida até hoje: existe ou não razão nas coisas feitas pelo coração?

Setembro de 2004. Dezoito anos depois, morando na capital do país, entro no Parque da Cidade pela primeira vez. A história de Eduardo e Mônica me vem à cabeça. Foi ali que eles se encontraram pela primeira vez, ela de moto e ele de bicicleta, ou camelo. Crio um canto imaginário e faço de conta que foi ali que o garoto encostou a bike e, olhar meio tímido, lançou um "oi" para a moça que tinha tinta no cabelo - e já estava lá, à espera. Uma dúvida eu não tinha: depois que eles trocaram telefone na festa estranha, com gente esquisita, foi Mônica quem ligou propondo um encontro. Eduardo não teria coragem de ligar pra ela.

Agosto de 1990. Noite agradável de sábado, Parque Antártica, São Paulo. Entro no estádio do Palmeiras - nessas horas, as paixões clubísticas ficam de lado. Ou melhor, tento entrar. A fila dá voltas, por causa da descoberta de ingressos falsos. Lá dentro, o Legião Urbana, que havia lançado As Quatro Estações, se prepara para entrar no palco. Ainda há uma multidão do lado de fora quando se escutam os primeiros acordes. Começa a correria, a segurança desiste de controlar os ingressos, entram todos, por todos os lados. Com entrada para a arquibancada, consigo ir para o gramado, enquanto a banda toca "Feedback Song for a Dying Friend". Ali estava eu, apreciador assumido de MPB, ouvindo e curtindo aquele cara incomum (que tinha acabado de sair de um relacionamento) se contorcendo no palco. E uma banda sem nenhum exibicionismo. Estádio cheio. O repertório de sempre: referência a drogas, exaltação da amizade, problemas com os pais, amores imperfeitos ou ridículos, como são todos os amores, ou não seriam amores. Mas também uma menção mais explícita ao homossexualismo. Citações da Bíblia e de Camões, de Buda. Mais agitado que Dois. "Não achávamos que o Quatro Estações fosse estourar, porque é um disco bem difícil, mas todo mundo gostou. As letras são complicadíssimas e não é tão pra cima quanto acham", disse Renato em entrevista de 1994 publicada pela Folha de S. Paulo em 2001.

Mas o que diferencia Legião de outras bandas é a quantidade de faixas expressivas, músicas de que a gente lembra até hoje. "Eu quero trabalho honesto/ Em vez de escravidão" são versos de 1986 que soam atuais. E o que dizer de "Mas nos deram espelhos/ E vimos um mundo doente"? E era incrível a ligação de Renato, principalmente, com o público. Ligação que muitas vezes descambava para o exagero, com shows tumultuados. O de 1990 não foi.

Em 1996, dez anos depois de Dois, eu ajudava a editar um suplemento voltado para o público jovem, quando saiu o disco A Tempestade. Ouvi e comentei com um colega: acho que Renato está morrendo mesmo. Era a despedida. "Não quero mais ser quem eu sou/ Mas não me diga isso/ Não me dê atenção/ E obrigado por pensar em mim". Era a febre que não passava e um anjo triste que não saía de perto dele.

Como toda banda, Legião deixou fãs, admiradores e gente que não curtia aquele som. Como vários grupos e cantores, pareceu ter virado moda - descobri isso bem depois, talvez por não gostar de modas. Para mim, era uma banda que, além de fazer boa música, deixava mensagens às vezes inquietantes, como "celebrar a estupidez humana". Mas moda é coisa que passa, e Legião se escuta até hoje, e muito. Um som para ficar. Nada de "messianismo" ou "Vandré da nova geração", bobagens que chegaram a ser ditas. Renato não era um herói, era poeta. Dependente químico, também não foi anti-herói. Pense na música que se fazia naqueles aparentemente distantes anos 80 e 90. Será que Legião não merece um lugarzinho de destaque nessa discoteca do tempo, no nosso coração musical? Pense logo. Não temos tempo a perder. Pense devagar. Temos todo o tempo do mundo.

Vitor Nuzzi
Rio de Janeiro, 9/8/2006

 

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