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Quinta-feira, 3/8/2006 A Legião e as cidades Guga Schultze As cidades, eventualmente, produzem música. Os grandes centros urbanos são, a longo prazo, usinas musicais em funcionamento contínuo e, nesse processo, as cidades podem gerar momentos específicos, períodos em que, às vezes, deixam sua marca no instável mapa cultural do país. Existe uma relação entre a música e a cidade que a gerou e essa relação, difícil de explicar em palavras, é facilmente percebida no momento em que a gente, turista ocasional, atravessa ruas - a pé, de carro - e deixa que um sentimento exógeno, estranho aos nossos hábitos, nos alcance. Talvez numa esquina, olhando alguma avenida que parece vagamente familiar - porque dizem que quem viu uma cidade grande, viu todas - mas não é bem assim. Num amanhecer qualquer, em Ipanema, por exemplo, quando as ruas estão ainda meio desertas, junto à orla do mar, com o céu rapidamente assumindo um azul inesgotável, a gente pode admitir sem nenhuma dúvida que essa zona sul do Rio é o único lugar possível para gerar coisas como o "Surfboard", de Jobim e, como ela, todo o momento antológico da Bossa Nova. Ou num entardecer, no alto da avenida central da capital de Minas, no sopé da montanha e olhando a cidade que se espalha e que mergulha ao longe num vermelho mineral, a gente pode ouvir - poéticamente mesmo, no vento - alguma coisa da melodia estranha, hipnótica, do Clube da Esquina, a primeira, do Lô Borges e do Milton. A última vez que estive em Brasília já faz muito tempo, mas a primeira impressão perdura como um símbolo e está longe de se tornar vaga como outras memórias da mesma época. Havia a presença absoluta do espaço, potencializado em cada centímetro quadrado das avenidas sem fim aparente; uma luminosidade intensa, silenciosa, pairando sobre a cidade, etérea como a luz original. O labirinto ali é o labirinto inverso que Jorge Luis Borges viu nos desertos; sem becos, ruelas e sombras, sem a economia, às vezes triste, das aglomerações humanas. A cidade não é econômica, em qualquer sentido; não é vertical, mas horizontal e é nesse sentido que se estende até a memória de seus visitantes. Brasília é mais espantosa ainda porque, de muitas maneiras e contra todas as expectativas, deu certo. Uma espécie de disneylândia política, construída no nada e em tempo recorde, uma grande capital que não tem nem cinquenta anos. Seu nativo mais velho não teria ainda essa idade mas, em Brasília, o tempo passa depressa, queima etapas. Já possui essa aura mítica que outros grandes centros levaram muito mais tempo para incorporar. Aspectos variados do desenvolvimento natural das cidades foram pré-concebidos e, sem um sentido pejorativo, pode-se dizer que em Brasília há um pré-conceito urbano. A palavra-chave, geográfica, para capturar sua essência é "urbanismo"; um conceito que já existia antes de Brasília projetar sua primeira sombra no planalto central. Quando visitei Brasília, dessa última vez, não havia ainda sua música (suponho que estivesse sendo produzida) mas, pouco tempo depois, a Legião Urbana estava nas paradas, através do país. A associação foi imediata e eu estava lá de novo, caminhando na esplanada, ouvindo o riff de guitarra que inicia o "Tempo Perdido", esperando a tempestade que esse tempo traz, "da cor dos seus olhos castanhos" - um momento, poderoso, da poesia dentro da canção. O nome da banda era sintomático, um achado, na medida em que seu berço era Brasília. A Legião fazia uma música simples (rock, claro), mas bela, com melodias que giram, mais ou menos livres, em torno de uma harmonia básica, de um bom gosto a toda prova. Algumas grandes canções vieram cimentar o fato de que a banda não era só mais uma banda surgida na nova eclosão do rock no Brasil. Havia a preocupação evidente com a qualidade das canções, deixando de lado, talvez, o tiroteio cego em todas as direções e concentrando-se num clima, numa sonoridade específica (a formação clássica do rock - baixo, batera, guitarras e vocal - ajudava); havia em suma, desculpem a palavra, mensagem. Renato Russo, o legionário-mor, fã confesso de John Lennon, talvez tenha filtrado como ninguém o que existe de dúbio na letra de "Strawberry Fields", Beatles, construindo dessa primeira influência sua própria e original expressão. Suas letras são marcadas por esse sentimento ambíguo, frases que se opõem a outras ou não se definem de imediato; introspectivo, reflexivo, num momento em que muitas outras bandas simplesmente berravam uma anarquia sem direção. Morou, me parece, nos Estados Unidos e falava fluentemente o inglês. Quando sua banda apareceu, já veio madura, pensada, produto final - a Legião Urbana tem essa característica estável, uma maturidade na concepção do som, do estilo, que é marca das coisas elaboradas com critério e, a julgar pelas letras e pela performance, Renato Russo deve ter sido um sujeito com senso crítico refinado. Houve também, quando das primeiras audições da Legião, o fato meio irônico da voz de Renato Russo ser muito semelhante ao vocal de um dos velhos ídolos da Jovem Guarda, Jerry Adriani, grande cantor, diga-se de passagem, mas brega incorrigível. Teve gente que chegou a pensar, antecipando essa onda de filhotes (de Elis, de Jair Rodrigues, de Simonal), que Renato Russo era um deles; no caso, filhote do Jerry Adriani. Eu também percebi a semelhança mas a Legião me remeteu mais a um outro Renato, também da Jovem Guarda, antes de cair no ostracismo e na breguice sem volta: Renato e seus Blue Caps, a banda inaugural do rock no Brasil. Tem que se ouvir os Blue Caps em sua primeira fase (que é a que conta), sem preconceitos, para perceber a ponte de uns vinte anos (e o abismo abaixo dela) que ligam as duas bandas. Vinte anos é tempo mais que suficiente para a consolidação de um mito e, nesse ano, já são vinte anos do lançamento do segundo album da Legião, o Dois, o vinil da capa parda. Em vinte anos a Legião arrebanhou e formou - desculpem, eu não resisto - uma legião de fãs. Esses, entre os quais eu me incluo, têm à sua disposição um manancial da melhor música de rock, para ouvir quando der na telha. Citei a palavra mito porque uma das características do mito é sua resistência ao tempo. Pode-se, tranquilamente, ouvir a Legião hoje; suas grandes canções não envelheceram um decibel. E voltando à minha idéia central, penso em Brasília e me espanto ao perceber como aquela geografia centrífuga gerou um rock que é um trampolim para o centro, um mergulho no interior do peito. E, é claro, penso também que Brasília já tem sua música. Guga Schultze |
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