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Quarta-feira, 30/8/2006
As cidades e as musas
Ana Elisa Ribeiro

As árvores frondosas cedem lugar ao amarelado do semi-árido e às árvores retorcidas pela falta d'água do solo, pela presença constante do Sol. As semprevivas aparecem para amenizar a paisagem e deixar nela umas pintas de cor. Do gado há sombra, dos pastos, nem isso. Fantasmas sentados nos cruzeiros. Às vezes meninos e suas bicicletas precárias.

Na cidade, a rota dos escravos termina em grandes construções. Às vezes em igrejas. O chão de pedras parece construído para brincar. Amarelinhas cedem espaço aos turistas. Os carros parecem desalojados. Um único semáforo parece pendurado no passado. Nem os motoristas o vêem. As meninas da cidade são diferentes das outras. Embora todas passem pelo mesmo adro, não têm os mesmos olhos. Os turistas usam roupas de nativos. Os nativos usam falares. O Banco do Brasil está escrito com Z. Discute-se se a história tombada pode ter nova ortografia. Nem mesmo as marcas sobrevivem ao patrimônio.

Diamantina parece encrustada numa pedra semi-azul. Ao redor, uma muralha, além, um portal. À noite, o cruzeiro é iluminado. Os fantasmas aparecem para os transeuntes. Os ruídos de passos são duplicados. Junto com os meus sapatos vão outros caminhantes. As janelas coloridas se ressentem dos tempos. Os beirais são justos uns nos outros. Aos pássaros resta pular. Ao meio-dia o anúncio da morte do marido de dona Maria. Dona Maria de Joana. Dona Maria de Joana de Jonas. Todos sabem quem era. Marido prestimoso, agora que morreu, presta mais ajuda ainda. Dona Maria convida para o velório. A cidade nem dá fé que é hora de almoçar. Passa o carro velho dando a notícia. Morte anunciada. O marido de dona Maria morreu. Mais um. Menos um. E todos vão almoçar.

Continuam os cheiros de feijão e lingüiça. Os pneus dos carros se ajeitam entre uma pedra lisa e outra. As lojas de pedras e semijóias aparecem como semprevivas. Vitrines coloridas sugerem histórias de garimpeiros. Lápis lázuli, ametista, ônix, quartzo rosa, turmalina, opala, madre pérola, cristal rutilado. A moça me ensina que os rutilos são chamados, popularmente, de cabelos. O anel é majestoso. As cores parecem mechas de aquarelas. Os terços são feitos em madre pérola. As jóias de coco e ouro mantêm os desenhos de séculos passados. Especialmente os brincos, que não uso. A moça se assusta: onde já se viu uma moça sem orelha furada? Pois veja, vendedora, que desgraça. Tenho cá as orelhas lisas, retas, intactas. E gosto, acredite, gosto muito delas assim. Nem brincos de coco e ouro, nem de cristal, nem de prata. Acredite. E ela me diz que isso é coisa da capital. Quem disse?

Diamantina tem febres de dia e, à noite, ela esconde seus calores. Ganhei um cachecol cor de chumbo. Isso é coisa de Ouro Preto. Diamantina, como disse o poeta, é Ouro Preto em dia de sol. Verdades. O dono da loja conta que, aos domingos, um grupo de poetas locais faz alvoroço no beco. Aproveita o comerciante para abrir a loja. E ele me diz que é tudo lindo. Conta a mãe que a filha ganhou poemas em cartazes colocados embaixo da porta. O pai, orgulhoso, conta que uma carta dava conta dos poemas: à minha musa inspiradora. Veja bem que graça tem uma filha musa. Na capital não tem dessas coisas, não é? Mal sabe ele que já fui musa. Mal sabe ele o peso que isso tem. A linda filha, Letícia, sorri delicada. Linda mesmo, merece uns poemas, e nem só de poetas locais. Musa inspiradora, ela pronuncia isso para pôr no currículo. O pôr-do-sol. Os brincos de argola bem grandes a deixam mais morena, mais importante. A prata das Gerais pende das orelhas. Musa. O pai tem orgulho da filha, da musa, dos poetas e do beco. Levei de sua loja uma flor de cristal e um anel de quartzo verde. Diz que dá sorte. Por que não tentar? Nessas coisas, tenta-se de tudo.

Contos fantasiados (em versões melhoradas)

I
Prometo acordar de bom humor
Todos os dias da minha vida,
Disse Pinochio à noiva

II
Abri os olhos
O príncipe já estava lá
E era feio
Contou Branca de Neve às amigas

III
Cinderella comeu a abóbora
Para ficar mais tempo na festa

IV
Quando o lobo soprou
A casa virou escombro
Osama nas alturas

V
O lobo comeu a avó
Porque a neta
Usava chapéu

VI
Difícil é estacionar isto
Disse Cinderella ao cocheiro
depois da meia-noite

Ana Elisa Ribeiro
Diamantina, 30/8/2006

 

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