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Quarta-feira, 27/9/2006
Eu não uso brincos
Ana Elisa Ribeiro


Ilustra by Tartaruga Feliz

A vida inteira passei com as orelhas intactas. Nem reparo nos penduricalhos das moças. Reparo mais quando os homens os usam. Até porque acho feio. Desde criança ouvi dizer que usar brinco fazia mal. Meu pai, como eu, detestava dar manutenção em coisa que não precisava estar estragada. E orelha inflamada era uma delas.

Todas as meninas da minha sala usavam brinco. As argolas me deixavam cabreira porque eram parecidas com os adornos dos piratas de filme. Interessantes. Outras coisas não me chamavam a atenção. Brincos muito discretos me pareciam invisíveis. Brincos muito grandes me deixavam intrigada. Pensava eu que um brinco que relasse nos ombros e ali pelo pescoço deveria fazer cócegas. Curiosidade que jamais sanei. Alguém me responde, por favor?

Mas na minha meninice, usar brinco era sinal de ser feminina, embora minha mãe fosse muito vaidosa, mas também não os usasse. Todas as garotas da rua compravam brincos na feira livre da Afonso Pena. E eu ali, sem noção alguma do que seria um brinco caro ou um brinco barato. Brincos de ouro não davam alergia, era a informação que eu guardava. Quem sabe um dia ela fosse útil? Quando eu fiz 10 anos, ficou insustentável não usar brinco. Todas as minhas primas estavam na moda. Todas as minhas vizinhas compravam brincos na feira. Todas as minhas colegas de classe conversavam sobre os brincos de prata. E eu não podia falar nada. As orelhas virgens, lisas, perfeitas. O lobo aderente me deixava ainda mais sem graça. Nem aquela pelanquinha na beirada da orelha eu tinha. Pelanca que sustentava os brincos da professora e da única tia da família paterna que tinha uma orelha furada.

Aos poucos, descobri que a tradição das mulheres sem brinco era antiga e sobrevivia nas implicâncias do meu avô. Nenhuma tia podia furar orelha. Coisa de índio, diziam isso em tom pejorativo. Mas uma delas, uma heroína, furou as orelhas e passou a usar enormes brincos depois que se casou. Mas, segundo dizia a família, aquela tia não era bom exemplo. Fez tudo errado, casou com homem separado, foi morar longe, furou a orelha. Um horror. Um mito.

Aos 11 anos, pedi à empregada para me levar à farmácia. Nem me lembro com que dinheiro, furei a orelha. Pus logo um brinco bem discreto, uma pedrinha de brilho verde, banhado a ouro, para não infeccionar. Antes mesmo de chegar no hall de casa, meu irmão me delatou. Meu pai veio como se eu fosse criminosa. Arrancou-me os dois brincos das orelhas, jogou-os na privada, deu descarga e mandou que eu ficasse olhando eles escorrerem em direção ao esgoto. Atrevida. Menina sem limites. Depois, me bateu muito e ameaçou minha mãe, que tentava me socorrer. Para arrematar, um castigo de meses, até que os furos se fechassem para sempre.

Nem prestei mais atenção nas conversas das meninas. Nem quis mais saber de brincos. Aos 15 anos, já havia me esquecido da ousadia e nem queria mais pensar em como eu seria de brincos, mesmo os de argola grande.

Pior mesmo foram as vezes em que ganhei brincos de presente. As tias-avós os dão com boa intenção, embrulham para presente, com papéis dourados e vêm com olhos sutis. Quando eu abria os pacotinhos, esmerilhava meus talentos de atriz e adorava meus cabelos longuíssimos, negros, que tampavam as orelhas. Nem percebiam a gafe. Muito chato confessar as orelhas íntegras. O jeito era sorrir fino, agradecer, fingir que guardaria os brincos, que às vezes foram de ouro 18. Uma pena. E eu nem os podia dar a outra menina, com medo de que as tias-avós perguntassem. Se o fizessem, era só dizer que, por descuido, a orelha havia fechado. Mas isso não chegou a acontecer.

Mais tarde, o brinco virou piada. Se brinco em mulher merecia palmadas, imagine-se em homens. A última prova pela qual meu pai passaria seria ter um genro de brincos. Nem pensar. O namorado, se me amasse, deveria deixar as bijuterias de lado. E mesmo antes, minha escolha já era um tanto condicionada pela categoria dos apetrechos. Homem tatuado e homem de brinco eram sumariamente excluídos. Mas isso não duraria para sempre. Naquela época, não se falava em piercing. Graças a Deus.

Anéis, colares, pulseiras e relógios, tudo era permitido, mas os brincos, não. Brinco agride, brinco é arriscado. No terrorismo de sempre, meu pai narrava os casos de hospital que envolviam adolescentes, brincos, orelhas rasgadas e cirurgiões plásticos. E o terror nos deixava longe dos furos na orelha. Cruz-credo se alguém me rasgar uma orelha. E então passamos a reparar nas mulheres com orelhas levemente deformadas. E tocávamos nossas orelhas com prazer. Virgens. No meu caso, reconstituídas a tempo.

Os namoros pareciam mais seguros sem brincos. Certa vez, achei muito engraçado quando uma amiga disse ter rido até engolir os brincos. De outra feita, um amigo contava o infortúnio de engolir os brincos da ávida namorada. Seguro era usar brinco grande. De minha parte, estranhíssimo beijar as orelhas de um homem de brincos. No lugar do gosto de carne macia, eventualmente, suada, um barulho de metal e um gosto de ferrugem. Nada agradável. O aparelho ortodôntico agarrava nas argolinhas hippies. Ficção.

Mais velha, descobri que brinco era um ótimo presente para dar às amigas aniversariantes. Passei a comprá-los e a fazer estoque de lembrancinhas simpáticas. Prata, cerâmica, design raro, cor. Lindos penduricalhos de orelha. As amigas eram sofisticadas. O presente agradava e era barato. Além disso, facilitava um tipo de compra que sempre me havia irritado. Vez ou outra eu desejava um colar, mas ele vinha com os brincos, sem chance de venda separada. Uma tristeza saber que o preço era para ambos e eu não teria como usar o par. Pois bem, descobri que poderia comprar os pares. O colar, para mim, os brincos, para minha reserva de presentes oportunos.

De vez em quando alguém se irritava muito com minha condição de mulher sem brinco de pérolas. Especialmente os homens gostavam de me dizer como eu ficaria bem com este ou aquele modelo. As moças ficavam pasmas com a falta do adereço. E eu, nem aí.

Quando minha irmã mais nova passou pelo conflito de furar as orelhas, meu pai foi conciso: pergunte à sua irmã mais velha o que ela acha. Aproveite e pergunte o que eu farei com você. E a irmã desistia para sempre da empreitada.

O resultado disso foram duas mulheres de orelhas íntegras. Sem brilho, sem cor, sem adornos, ao menos nas orelhas. Se de fato os cabelos tampam, não haverão de fazer falta. As amigas dão depoimentos que nos soam intrigantes: quando saio sem brincos me sinto nua. A nós resta atentar para os relógios, que me parecem tão acessório de estilo quanto os brincos são para as outras.

E mesmo que, em geral, as pessoas não percebam a falta dos brincos, de vez em quando passo por momentos constrangedores. Na semana passada, no shopping, fui comprar uns anéis. Olhei, experimentei e reparei na vitrine dos brincos. Como adoro espirais e tenho várias, costumo transformar brincos em outras coisas (pingentes e até anéis). E mirei uma espiral enorme, de aço cirúrgico, que muito me interessou. Mas era um par de brincos que a atendente se apressou em me mostrar de perto. E disse que eu os experimentasse. E veio com eles na direção das minhas orelhas. E me apressei em recusar, dizendo a verdade: não tenho orelhas furadas. Imediatamente, a senhora passou a me contar de uma neta que também não usava brincos. Contou da menina e, mais adiante, afirmou: "Ela é muito largada! Não usa brincos". Me senti largada também. Não respondi e nem deixei que o impulso de um esporro tomasse conta da minha ação. Deixei que a velha tivesse raiva da neta e me pus logo a pagar pelos anéis. Tremenda falta de tato da vendedora. Tremendo preconceito, já que até o momento da experimentação, ela sequer havia notado a falta dos adornos. Então, até ali, eu era até arrumadinha. Não importaram minha calça bonita, meu sapato fechado, minha blusa de linha elegante, meu cabelo bem-aparado. Nada. O que deixa uma mulher "largada" é a falta do brinco. Meu filho, coitado, terá que aprender desde cedo. Para desespero do avô, meu marido não só usa dois brincos na mesma orelha como tem 3 tatuagens, das grandes, espalhadas pelo corpo. Escondemos ambos por vários meses e deixamos que meu pai fosse descobrindo tudo aos poucos. Mas é engraçado ver o bebê observar que os pais transgridem a cultura da família, um para mais, outro, para menos.


Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 27/9/2006

 

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