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Segunda-feira, 21/8/2006 A vez dos veteranos Jonas Lopes 2006 tem sido um ano em que o mercado editorial brasileiro se dedicou a observar a tal ascensão dos novos autores, tendo como destaque as estréias de André Sant'Anna (O Paraíso é Bem Bacana) e Daniel Galera (Mãos de Cavalo) na toda poderosa editora Companhia das Letras. Outros fatos corroboram isso: o recente prêmio Jabuti concedido a Marcelino Freire por seus Contos Negreiros, o sem-número de coletâneas de contos e iniciativas como a Safra XXI, da Rocco, além da notícia de que a Globo pretende transformar o primeiro romance de JP Cuenca em minissérie. Ninguém pode reclamar que eles não vêm ganhando chances de mostrar o que sabem. Por isso é importante comemorar a chegada de novos romances de dois autores veteranos: Moacyr Scliar (Os Vendilhões do Templo), de 69 anos, e Carlos Heitor Cony (O Adiantado da Hora), que há poucos meses completou 80. É um choque essencial até para que possamos compreender e analisar os novos autores com maior propriedade, já que são (ou deveriam ser) os conflitos das gerações anteriores - o embate entre seus pontos positivos e negativos - que concebem os anseios que acometem as posteriores. Os Vendilhões do Templo (Companhia das Letras, 2006, 296 páginas) é composto por três narrativas dispostas de forma distinta em tempo e espaço, porém algumas idéias tangenciam cada uma. A primeira e mais longa delas é a própria parábola dos vendilhões do templo, explorada timidamente na Bíblia. Scliar transfere a ótica e concentra a narrativa no vendilhão, um homem pobre que deixa as dificuldades do plantio no campo e leva sua família a Jerusalém. Descobre sua vocação para comerciante e vira a sensação no Templo vendendo pombos para os sacrifícios. A maré de sorte termina, como sabemos, quando Jesus derruba as mesas dos vendilhões, acusando-os de comercializar a fé ("a minha casa é uma casa de oração, mas vós fizestes dela um covil de ladrões"). A segunda narrativa do livro tem lugar em 1635. O jovem padre Nicolau é enviado a uma missão jesuítica no interior do Rio Grande do Sul para ajudar um padre mais velho no trabalho de catequização dos índios. O padre mais velho morre e Nicolau fica sozinho, sem saber falar a língua dos indígenas. Um homem misterioso aparece e se oferece para servir como intérprete, e aos poucos Nicolau descobre outras intenções por trás da gentileza do estranho. Na terceira narrativa de Os Vendilhões do Templo estamos em 1997, e um assessor de imprensa da prefeitura da cidade fundada séculos antes pelo padre Nicolau da parte anterior relembra uma encenação escolar da parábola do vendilhão do templo, ao mesmo tempo em que acompanha os efeitos do novo governo de esquerda da pequena cidade. Moacyr Scliar não é e nem pretende ser um romancista de idéias, e por isso Os Vendilhões do Templo traz mais perguntas do que respostas. Como não poderia deixar de ser em um livro com esse título, há reflexões sobre relações de poder e lucro. O autor gaúcho acerta em não se posicionar diretamente ou apelar para soluções edificantes e/ou maniqueístas. Sim, o vendilhão é ganancioso e vive do dinheiro que ganha comercializando a fé; mas deixemos de hipocrisia: ele também tem uma família para sustentar. Depois de ver Cristo crucificado, o vendilhão tem a oportunidade de conseguir uma grande quantia em dinheiro e a recusa: "tivera a riqueza em suas mãos e a recusara; tivera nas mãos a salvação e a recusara, mas não se arrependia: a teimosia era sua melancólica vingança". Ao mesmo tempo em que é cínico o suficiente para vender a fé, é "honesto" para dispensar o que não lhe pertence. Não são bifurcações morais como essa que fazem do humano humano, afinal? O padre da segunda parte do livro, em sua pureza imaculada, desconfia do forasteiro que parece não querer que ele aprenda o idioma dos índios. Julga-o e condena-o, e por fim acaba surpreendido. A força da última parte de Os Vendilhões do Templo está no fato de Scliar buscar um assunto que poucos autores brasileiros parecem querer encarar: o Brasil contemporâneo. Nossa literatura moderna, cada vez mais voltada para dentro, carece de tentativas de tentar entender nosso tempo, e na prefeitura de São Nicolau do Oeste sentimos aquela desesperança advinda da frustração com a esquerda (existe algo mais em pauta?). A corrupção, aliás, permeia todo o livro (um "lubrificante que facilitava o movimento das engrenagens sociais", na visão do vendilhão do templo). Embora não haja tanta profundidade, o texto de Scliar é fluente e bem humorado, irônico sem ser cáustico. Já Carlos Heitor Cony adia mais uma vez o aguardado Messa para o Pappa Marcello (que ele vem prometendo terminar há décadas) e retoma, em O Adiantado da Hora (Objetiva, 2006, 217 páginas), o gênero picaresco explorado em livros como Pilatos e O Piano e a Orquestra. Saem a postura existencialista e as reflexões sobre a vida da classe média carioca e dos relacionamentos entre casais; entram personagens rocambolescos metidos numa trama burlesca. Na verdade não há muita trama: Zé Mário, uma espécie de adjunto e quebra-galhos de um escritório de advocacia, é enviado a Cabo Frio para "captar informações" acerca de um suposto acordo entre Brasil e Alemanha para montar ali uma usina nuclear. Fora isso, a única outra informação é o desaparecimento inexplicado uma alemã de "coxas teutônicas". Em Cabo Frio, Zé Mário entra em contato com algumas figuras curiosas, que o ajudam a entender o desaparecimento da alemã. Entre elas, um homem que jura ter passado uma noite tórrida com Madre Teresa de Calcutá, uma mulher que ressuscitou durante o próprio velório e um feiticeiro negro, "esguio como um pente" e artesão de talento. O problema é que Cony não transita nesse território burlesco com a mesma eficiência e naturalidade de seus livros mais típicos. Falta em O Adiantado da Hora (seu romance mais fraco até hoje) um daqueles seus grandes protagonistas, narrador amargurado, dono de humor corrosivo e geralmente autodepreciativo - o mote do livro é ter humor, e Zé Mário pouco nos faz rir. Por outro lado, se o protagonista não empolga, o elenco de malucos que ele encontra diverte e compensa a falta de risadas do resto do livro. Falta também certo foco na condução da história - em alguns momentos as tramas paralelas parecem soltas e dão a impressão de que o autor está apenas acumulando um punhado de fatos excêntricos para divertir o leitor e fazer jus à pretensão picaresca. Não basta reunir bizarrices e deixar que elas bastem por si só. Pilatos partia de uma situação pouco usual (um homem que sofre um acidente, perde o pênis e passa a carregá-lo dentro de um vidro de compota), mas também abordava questões como a repressão da ditadura militar, grupos guerrilheiros clandestinos e todo um lado "sujo" do Rio de Janeiro. Os dois livros não são marcos de nada e nem vão quebrar paradigmas. São leituras rápidas: se encaradas dentro de sua pretensão (e no caso de O Adiantado da Hora, descontados alguns de seus defeitos), valem algumas horas do nosso tempo. E são adendos dignos às carreiras dos dois autores; sobretudo à de Scliar. Para ir além Jonas Lopes |
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