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Terça-feira, 22/8/2006
Humor: artigo em extinção
Luis Eduardo Matta

A cada dia que passa, me convenço mais e mais de que, para se viver bem, devemos procurar não nos levar muito a sério e adicionar o máximo possível de humor ao nosso dia-a-dia. Isso, é lógico, não significa que tenhamos, de uma hora para outra, que nos converter num bando de bobocas irresponsáveis, que acham graça em tudo e não têm nenhuma preocupação ou meta. Tampouco defendo o desprendimento total ou a negação do nosso amor-próprio e da nossa individualidade como forma de vida. Mas é inegável que o ser humano tem o dom de se dar um valor excessivo. A impressão, muitas vezes, é a de que as pessoas não se permitem olhar para os lados, enxergar a complexa multiplicidade da vida, se dar conta do quanto somos insignificantes se comparados com o espaço e o tempo. Levar-se muito a sério é, portanto, a rejeição da realidade. E a realidade diz que ninguém é tão importante que se torne imprescindível e insubstituível. Nascemos, vivemos, morremos e a Terra continua a seguir o seu curso, ainda que aos sobressaltos.

O humor é importante, pois nos abre os olhos para o ridículo da condição humana e da maioria das situações cotidianas. Se pararmos para pensar, veremos que grande parte do que nos acontece diariamente não tem a menor importância e, no entanto, insistimos em nos aborrecer e nos estressar com elas, em alimentar rancores tão desgastantes quanto desnecessários, em comprar brigas tolas por nada, em sofrer horrores para obter bens materiais que, na semana seguinte, parecerão fúteis e dispensáveis e, no fim das contas, não nos farão grande diferença, sobretudo no aspecto prático. Alguém já disse que rir é o melhor remédio e, de tão repetida, a máxima virou lugar comum. Mas, se é nos clichês que, muitas vezes, encontramos as grandes verdades, então não há mal algum em bradar que o mundo contemporâneo anda sério demais. E quando falo "sério", não me refiro, logicamente, ao quesito "seriedade" - aliás, seria ótimo se a seriedade fosse predominante, mas, infelizmente ela está cada vez mais em falta -, e sim ao quesito "sisudez".

É evidente que as pessoas riem. Principalmente num lugar festivo e informal como o Brasil. É só sair à rua e encontrar um grupo de pessoas reunidas, seja numa mesa de bar, seja em pé numa calçada, seja em qualquer lugar, para se ouvir as risadas, muitas delas eloqüentes, ecoando sem qualquer cerimônia. No Brasil, um país que se orgulha da sua irreverência, isso é comum. Mas será que essas pessoas, no fundo, são bem-humoradas? Será que elas, de fato, têm senso de humor ou as suas risadas se devem a alguma piada ocasional (em geral de baixo nível) ou, quem sabe, ao esporte preferido da sociedade, que é falar mal dos outros, muitas vezes num tom jocoso e corrosivo, principalmente quando o alvo do escárnio não está presente? Creio que nos habituamos a confundir riso fácil com humor, nos esquecendo de que nem todo humor produz riso e nem todo riso nasce do humor. Eles podem ser até opostos, em certas ocasiões.

Por que decidi abordar esse assunto? Na verdade, essa é uma idéia que vem me perseguindo há algum tempo, mas ultimamente venho pensando nela com mais freqüência. Recentemente, tive um insight bastante elucidativo. Explico: ando com vontade de passar todo (ou boa parte) do meu acervo de fitas VHS, reunidas durante vários anos consecutivos, para discos de DVD. As fitas se deterioram com o tempo e um bom gravador de DVD hoje pode ser encontrado nas lojas por preços muito atraentes e, além do mais, os DVDs ocupam menos espaço e juntam menos poeira. Há algumas semanas, numa tarde de sábado, tranquei-me no meu apartamento e resolvi assistir a algumas das fitas da minha videoteca, apenas por curiosidade. A maioria delas traz programas gravados da televisão e eu não as via fazia muito tempo. Assistir a um programa gravado há vinte anos, por exemplo, incluindo aí os comerciais, é uma experiência muito inquietante. De súbito, nos damos conta da passagem acelerada do tempo. Aquele comercial de fitas cassete que, na época, eram o último grito da tecnologia e que hoje parecem peças tão obsoletas quanto um gramofone; aquele comercial da rede de supermercados que fechou há mais de uma década; aquele telejornal com âncoras que já estão aposentados e na época ainda eram relativamente moços. Enfim, é uma viagem no tempo em que chegamos a relembrar instantes das nossas próprias vidas, que estavam ocultas na memória. Mas o que me chamou mais a atenção nessas gravações, foram trechos de programas humorísticos da época. Inevitável não se deliciar novamente com eles. Eram os anos 80. Uma época onde a decadência na sociedade brasileira já era acelerada (isso, é claro, se considerarmos que, em algum momento, a sociedade brasileira esteve ascendente. Mas essa já é uma outra história, que rende até um artigo específico a respeito). Mesmo assim, não posso negar que fiquei abismado em ver como, daquela época para hoje, transcorridas cerca de duas décadas, nós decaímos culturalmente.

Experimente sintonizar qualquer programa humorístico na televisão hoje (eles são poucos, é verdade; e nem tão humorísticos assim), para ver o que lhe aguarda. Via de regra, o que o caríssimo leitor encontrará será um arremedo de humor rasteiro, sujo, de nível subterrâneo e repetitivo, que chega a ser grotesco e, o que é pior, sem graça (quer coisa mais patética do que humor sem graça?). Naqueles anos 80, imortalizados nas minhas hoje desbotadas fitas VHS, o mundo podia estar em declínio, mas ainda havia espaço para um pouco de inteligência na televisão. Será que ficamos mais burros? Ou será que as emissoras de TV andam preferindo apostar nas mesmas fórmulas surradas, com medo de que a audiência se surpreenda com alguma novidade e mude de canal? Numa nação de analfabetos funcionais, como a nossa, não é arriscado afirmar que a televisão é o espelho da sociedade. Por isso, resolvi utilizá-la como exemplo. Mas não é preciso ser um espectador assíduo de programas de TV para se chegar a uma conclusão semelhante. Basta sair pelas ruas, interagir com as pessoas, ouvir as conversas alheias, observar o comportamento de todo mundo, enfim: tomar parte da vida real, para perceber que estamos vivendo num mundo duro, em que o humor - não a irreverência pura e simples, mas o humor elaborado, que reflete uma visão crítica e perspicaz da vida - vai se evaporando à medida que a inteligência torna-se artigo cada vez mais raro.

Muita gente acha estranho quando eu gargalho de certas situações que, à primeira vista, parecem vexatórias ou constrangedoras; ou, simplesmente, não entende quando faço uma ironia a respeito de um tema qualquer, interpretando o que eu disse ao pé da letra. Noutro dia, por exemplo, estava eu no supermercado para as minhas compras semanais (programinha que, aliás, eu detesto fazer), quando esbarrei numa mulher de meia-idade, muito bem vestida e maquiada, que conduzia morosamente o seu carrinho, bloqueando metade da passagem do corredor (a outra metade achava-se bloqueada pelos sempre inconvenientes funcionários do supermercado, que parecem eleger, de propósito, os horários de maior movimento para repor o estoque nas prateleiras). Vendo que eu seguia atrás dela ansioso para passar à frente, ela virou-se para mim com o semblante alterado, soltou dois ou três palavrões feios e me acusou de ser muito apressado. Repliquei que, além de muito veloz, ela era uma pessoa "finíssima", dona de um belo vocabulário e que, com certeza, recebera, na sua juventude, uma educação britânica, digna da mais alta fidalguia. A mulher não captou a minha ironia e, algo confusa, disparou a seguinte pérola, com incontida agressividade: "Por que você está me elogiando? Você deve ser louco, menino", e afastou-se na mesma hora (provavelmente com medo de que o meu próximo passo fosse lhe dar uma mordida). Não que ela estivesse totalmente errada ao me chamar de louco, mas, pelo menos, eu consegui que o meu caminho fosse desbloqueado e pude correr com as compras a fim de sair daquele inferno o mais depressa possível. Eu podia ter me estressado com a situação, mas a verdade é que toda vez que me lembro do rosto raivoso da mulher me chamando de louco, morro de rir. Circunstâncias como essa são comuns na minha vida e graças ao meu senso de humor, que está sempre em dia e afiado (ainda bem), não corro o risco de ganhar uma úlcera ou de ter crises diárias de pressão alta. Mas, quanta gente teria o mesmo posicionamento diante dessas pequenas adversidades do cotidiano?

A vida anda difícil, é bem verdade, e isso deixa as pessoas bastante desanimadas e, em tese, com poucas condições de cultivar uma postura mais leve e menos crítica diante de tudo. Muitas não se apercebem de que o humor é um dos mais eficazes remédios para os problemas que parecem se multiplicar a cada dia. Além de ser benéfico ao organismo (isso já foi, inclusive, provado cientificamente), o humor faz com que nos aceitemos mais facilmente enquanto indivíduos e seres sociais. Com o humor em dia, conseguimos rir dos nossos defeitos, minimizando os obstáculos e admitindo com a maior alegria e boa-vontade o quanto somos ridículos e limitados; não nos dobramos facilmente às críticas e zombamos das circunstâncias que nos desfavorecem. Ao nos aceitarmos, compreendemos melhor as idiossincrasias alheias e encaramos melhor os percalços da vida. É deflagrada uma benfazeja reação em cadeia, que melhora a nossa vida em todos os sentidos.

Mas, infelizmente, num país que se gaba da sua ignorância e chega ao requinte de achá-la pitoresca, poética e até engraçadinha, o humor - esse ao qual me refiro, que caminha lado a lado com a inteligência - não tem muita chance de vicejar. Em circunstâncias assim, como dar às pessoas o refinamento necessário para que aprendam a utilizar o humor como uma filosofia de vida, capaz de torná-la mais leve e interessante? É uma pena. É realmente uma pena que tanta gente tenha uma existência tão pesada e despenda tanta energia preocupando-se com coisas sem relevância. É muito triste e desolador saber que tanta gente passará pela Terra dominada pela ignorância, sem jamais conseguir aliviar-se do peso de vidas assaltadas por obsessões débeis e noções tortas do que seja a sociedade e o ser-humano. É melancólico ter a certeza de que o item pior distribuído no planeta não é o dinheiro e sim a inteligência; que a ignorância e o egocentrismo narcísico são dois dos maiores flagelos da sociedade, e que a sua erradicação parece mais difícil de ser levada a cabo do que a da pobreza mundial.

Não devemos perder tempo. Vamos despertar o humorista que existe dentro de cada um. E um bom primeiro passo é mirar-se no espelho e, com sinceridade, falar ao seu reflexo: "Não se dê toda essa importância. Dispa-se de parte dessa vaidade. Há bilhões lá fora iguais a você, com problemas semelhantes. Para que perder tempo com ninharias, já que quase tudo é ninharia? Relaxe e viva a sua vida, pois ela passa depressa". E vamos reservar as nossas energias para nos preocuparmos apenas com aquilo que realmente merece a nossa atenção e a nossa dedicação. Pratiquem. Eu garanto: vale muito a pena.

Nota do Editor
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Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 22/8/2006

 

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