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Quarta-feira, 1/11/2006 Cuidar, cogitar, tratar, amar Ana Elisa Ribeiro Ao longo do dia e, mais especificamente, na hora do almoço, veio-me a palavra "cuidar" à cabeça. Os fatos imediatos a trouxeram como um relâmpago. Talvez porque houvesse à minha frente uma criança faminta e o pratinho colorido. Também talvez porque eu tivesse a massagem marcada para as cinco da tarde. Ou porque o marido queixasse febre desde a noite anterior. Também poderia ser porque, da mesa da sala, mirei a suculenta semimorta por falta d'água no parapeito da área de serviço. Ou porque tivesse visto CDs fora das capas na estante. Um livro aberto no sofá. Os óculos do Jorge no assento da cadeira, prontos para serem esmagados por um sentar distraído. Ou porque eu mesma tivesse me esquecido de mim durante muito tempo. "Cuidar" ficou incomodando meu dia. Pensei mil vezes no dicionário etimológico que ficou na casa dos meus pais. De vez em quando ele me faz falta. Ou pensei em ligar o computador para consultar softwares inteligentes. Também pensei em "cuidar" mais da vida e deixar o trabalho um pouco para depois. Dei almoço ao guri, toquei o rosto do marido com as costas da mão, não era febre. Talvez fosse mais carência do que outra coisa. Eu ali, entre os dois, e ninguém para cuidar de mim. Acontece. Mães não podem ceder. Quando cedem, cai o teto sobre suas cabeças. Diz o Aurélio século XXI que "cuidar" tem muitos sentidos. Interessante: vem do latim "cogitare". Então, quando alguém "cogita" está "cuidando" também. "Imaginar", "pensar" e "meditar". "Julgar" e "supor". "Aplicar a atenção". "Fazer os preparativos" e "tratar". Por último, bem na ordem da minha vida, "ter cuidado consigo mesmo, com a sua saúde, aparência ou apresentação". Necessariamente. Eu passo o dia a cuidar dos outros, do emprego dos outros, das tarefas dos outros e do bem-estar de outro. Passo a vida discutindo o que fazer para melhorar isto ou aquilo, para os outros. Nem tanto que seja comunista, mas não menos do que o suficiente para que minha vida particular pareça distante de mim mesma. Passei grande parte da vida dizendo que jamais teria um filho. Marido era improvável, embora eu admitisse certas idéias de consórcio. Minha argumentação se constituía de um pilar: não gosto de cuidar de nada. De fato, até o cacto que ganhei de presente morreu jovem. O bonsai, dado por um amigo, não durou uma semana. Também espalhei por aí que detesto dar manutenção de qualquer espécie. Depilação no salão, unha feita, cabelo escovado ou chapado, maquiagem, tatuagem, sobrancelha. Vez ou outra, um incomodado vinha tentar me convencer de fazer sobrancelhas e deixar as pestanas mais leves. Mas nem que Malu Mader não fosse uma musa eu me submeteria a isso. Em geral, mulheres é que morriam de incômodo com meus pêlos. E eu passava a vida com a sobrancelha grossa e cincunflexa. Vez ou outra encontrei um tarado por mulheres assim. Ganhei apelidos: Patricia França, Teresa Batista, Marisa Monte. E não me inundei deles. E de tanto descuidar, tive um filho, que me mostrou como a paciência e o cuidado nascem do amor. Pensando bem: embora eu não demonstrasse muito amor por mim, amava os livros e os discos como a nada mais na vida. Tanto é que são limpos e seminovos, mesmo quando são antigos. Também às pastinhas e aos papéis devotei horas de apreço dedicado. Coisa que não fiz aos meus cabelos e muito menos às unhas, que gosto de roer para sanar as pontadas de ansiedade no estômago. O filho me obrigou à atenção quase exclusiva. Agora, mesmo, afirmava, aos prantos, que só dormiria comigo. O marido acabou em segundo plano, mesmo que eu o ajudasse a derrubar febres e tristezas de vez em quando. A casa não merece grande parte da minha atenção. Mesmo não contando com uma secretária doméstica, não me perco na observação das poeiras e das manchas na parede. Apenas o escritório me deixa preocupada. Não me mordo de raiva das almofadas e nem dos brinquedos espalhados pelo chão. Mas tenho cá a preocupação de que a vida seja possível neste ambiente. O almoço quase sempre está pronto para ser servido na hora certa. Em geral, as roupas estão guardadas ou penduradas onde devem. Assim como os sapatos empilhados num canto. E embora eu teça isso todos os dias, nem sempre recebo presentinhos de atenção das outras partes. Quando alguém viaja, aquele que fica deveria preparar o lanche da volta do ausente com muito carinho. Como, em geral, sou eu que fico, preparo a mesa em que até as torradinhas têm forma de coração. Só não é melhor porque não sei fazer café. Mas quando viajo, o retorno é sempre mais triste do que a partida. Assim também é quando chego do trabalho e percebo que está tudo por fazer, inclusive o almoço. De repente, hoje, senti imensa saudade dos dias em que minha mãe entrava no meu quarto para me tomar a temperatura. Quando me achava prostrada, trazia logo um arsenal de termômetros e uma caixinha de remédios. O pai médico também receitou suas doses de cuidado e antibióticos. Mesmo os irmãos mais desligados vieram trazer histórias e carinho de madrugada. Alguns ex-namorados também souberam registrar seus cuidados. Gentilezas compradas em boas padarias, bombons finos, rosas de chocolate num dia comum. Ou aquele que, em minha rara visita noutro estado, comprou um jogo de cama novo para combinar com a felicidade do dia. E encheu os armários da cozinha de guloseimas do meu gosto mais íntimo. Além de apaixonado, que às vezes não é suficiente, ele se mostrava atencioso. Cuidava. Ou aquele que examinava meus olhos míopes, de vez em quando, para surpreender qualquer início de descolamento de retina. Mesmo os amigos cultivaram os cuidados comigo. No presente, nas palavras, na companhia às estantes de livrarias, na conversa de bar, ao telefone, nos aniversários. Ou quando participavam dos projetos literários, mesmo quando eram do tipo "murro em ponta de faca". Estavam lá. As mães costumam ser fortalezas. E todas elas ficam cansadas de vez em quando. E se habituam ao cansaço, porque percebem que todos têm o direito de se cansar antes delas. As mães sentem no coração que devem sustentar o mundo com os ombros. Se faltarem, tudo desabará nas cabeças dos amados. As mães costumam viver em tempos paralelos. O cuidado que têm com os outros abafa o que deveriam ter com elas mesmas. Mas as mães estariam salvas disso se os outros as obrigassem a serem objeto de cuidado de vez em quando. Se os outros parassem de pedir colo e oferecessem os ombros e todos os bombons do mundo, ao menos uma vez. Se no lugar da manha primogênita, pudessem cuidar da vida delas um pouco. As mães febris não têm tempo de se colocarem os termômetros ocupados com os outros. O cansaço das mães está sempre subavaliado, submetido ao alheio. É preciso cometer o desligamento para que o autocuidado aconteça. Mas é necessário lembrar aos outros que o cuidado mais brando garimpa momentos inesquecíveis na memória dos maiores amores do mundo. Ana Elisa Ribeiro |
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