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Quarta-feira, 8/11/2006 As ligações perigosas Ana Elisa Ribeiro Sempre gostei de falar. O telefone era apenas mais uma modalidade para longas conversas. No final do mês, estava lá meu pai batendo à porta do quarto, com a conta na mão. A bronca durava muitos minutos, com direito a ameaças e a confiscos variados. E todo mês a história se repetia, numa época em que as tarifas nem eram tão caras. O telefone da casa dos meus pais é o mesmo desde que nasci. Outro dia, transformaram a linha em digital. Meu irmão logo assinou uma banda larga para a internet. Festa na casa. Mas quando cresci, para dar fim às ameaças do pai, resolvi assinar minha linha particular de telefone, com direito a extensão e tudo. Do quarto para o escritório, que ficava no cômodo pequeno do andar de baixo da casa, daquele dia em diante eu telefonaria por quanto tempo quisesse. E arquei sempre com minhas contas. Meu primeiro aparelho móvel era um Ultratac, da Motorola. Hoje talvez ele fosse exagerado, mas bem que me serviu durante mais de ano, nem sei para quê. Mais adiante, seguindo as modas celulares, comprei um Startac, quando ainda não conhecia os dotes da Nokia. O número do telefone fixo mudou algumas vezes. Numa primeira mudança, troquei o serviço analógico pelo digital. Na segunda, fugi das ligações perigosas de um ex-namorado. Mais tarde, a mudança de casa, quando me casei. E sempre acontecia algo engraçado com os números. O 3421 tinha mais engano do que telefone de açougue. E os enganos das espécies mais curiosas. O segundo número, do qual não me lembro, havia sido de um tal de Baltazar. E o Balta recebia apenas ligações de mulheres apaixonadas. Nunca eu havia atendido a tanta mulher! E todas queriam o Balta. Até que um dia me cansei de explicar que o número havia trocado de dono e tal e coisa. Resolvi acabar logo com a promiscuidade do Balta. Comecei a dar respostas diversas para cada moça que telefonava à procura do garanhão. A umas, disse que o Balta estava tomando banho na hidromassagem. A outras, disse que era a esposa do Balta e que teria prazer em dar qualquer recado a ele. E assim fui minando a lista de contatos femininos do Baltazar. Certo tempo depois, ninguém mais ligava para falar com o Balta e minhas ligações estavam normalizadas. O 9281, celular, também me deu alegrias improváveis. Sempre gostei de gravar mensagens curiosas na secretária eletrônica, justamente para intimidar os recados. Meu irmão, exímio tocador de vinhetas famosas nos teclados eletrônicos, gravou para mim a musiquinha das ligações a cobrar (tã nã, tã nã nã, tã nã nã) e eu, com minha treinada voz de moça de aeroporto, gravei lá uma mensagem seríissima. As pessoas, mesmo os amigos, desligavam assim que a música tocava. Ninguém queria pagar para falar comigo. Mais tarde, noutro número, também com gravação eletrônica que me identificava (com nome e sobrenome), uma senhora, no meio de uma festa barulhenta, me deixou o seguinte recado: "Ô Zé, traz aquele doce de leite que está em cima da geladeira. Não esquece!". Alguns minutos depois, a mesma senhora inconformada me deixou novo recado: "Zé, o doce de leite, hein!". É de se notar que o doce de leite jamais chegou à festa. O Zé deve ter levado um torra. A dona enganada deve ter ficado fula da vida com o doce encalhado em cima da geladeira. Outras ocorrências engraçadas são aquelas em que eu pego no fone para discar e alguém já está na linha. Coincidência exata como 2 e 2 são 4. Ou quando tive contato com o identificador de chamadas e achava lindo quando o outro me atendia sabendo que era eu. Em casa, o identificador serve para preparar o espírito quando a conversa é chata. Ou para não atender. Ou, ainda, para retornar trotes com broncas ameaçadoras. No 3426 ocorre outro tipo de engano. O ex-dono do número chamava-se Eduardo. Eduardo Brito. O prenome do meu filho de apenas 2 anos, que até pouco tempo não sabia falar e vivia na casa da vovó. E era comum as pessoas ligarem pedindo para falar com o Eduardo. E não era incomum que ficássemos ainda na dúvida se deveríamos chamá-lo. Outra coisa foram as vezes em que meu pai, acostumado ao apelido do meu irmão caçula, o Bebeto, e desacostumado do nome real, Luiz, desligou o telefone dizendo sempre que não morava nenhum Luiz naquela casa. Ou os freqüentes enganos de quando pediam para falar com a Ana, prefixo tanto meu quanto de minha irmã (Ana Elisa e Ana Cristina). Não sei por quê, mas sempre a chamavam primeiro. E ela, esperta, conversava como se fosse eu, aproveitando-se da semelhança entre as vozes. Quando éramos pequenos, o Flávio Cavalcante apresentava um programa chamado Boa noite, Brasil. E uma das brincadeiras da atração era que o Flávio poderia ligar para nossa casa. Para ganhar um prêmio, deveríamos atender dizendo Boa noite, Brasil. Pois bem. É claro que recebemos séries de ligações assim dos tios, que tentavam nos enganar e quase conseguiam. A troca de trotes em família era habitual. A história que ficou para os anais aconteceu quando meu tio procurava um carro para comprar. Corcel II, vermelho, ano tal, em bom estado. E meu pai pagou anúncio no jornal que oferecia o carro dos sonhos do tio, em endereço que não existia, em bairro longínquo. E o tio foi atrás. Mas essas crônicas são outras histórias. Preciso ir que o telefone está tocando. Ana Elisa Ribeiro |
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