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Quarta-feira, 30/8/2006
RI na Casa do Saber
Tais Laporta

À primeira vista, quando alguém fala em RI - Relações Internacionais - as primeiras palavras que chegam à cabeça são Hezbollah, Rodada de Doha, preço do petróleo, diplomacia e mais diplomacia. Descobri, contudo, que essa sigla comum nas empresas e jornais está bem perto de nós - bem mais do que imaginamos. Nada em RI é o que parece. Pelo menos, foi nessa atmosfera que a Casa do Saber promoveu o curso de Introdução às Relações Internacionais, trazendo ao centro da discussão o professor de RI e doutor em Ciências Políticas pela USP, José Luiz Niemeyer.

A maior surpresa do curso, com exceção ao conteúdo, foi, sem dúvida, os alunos. Curiosamente, o projeto da Casa atraiu um público altamente eclético: entre eles, o estudante de RI, o economista, o publicitário, a engenheira química, o administrador de empresas, a jornalista e a bacharel em direito. Todos ávidos por pescar alguma informação essencial, declaradamente dispostos a aplicar o conhecimento digerido no seu campo profissional. "Interessante!", exclamou o professor Niemeyer, ao descobrir a especialidade de cada um dos presentes. No percurso das quatro aulas previstas na programação, já estava provado que ele não exagerou, e que Relações Internacionais está realmente em quase tudo.

Você deve questionar como um tema que discute os conflitos bélicos entre Israel e Líbano pode influenciar, por exemplo, no processo de criação de uma peça publicitária. Ou ainda, no desenho da planta de um apartamento. "Existem médicos que estudam RI para poder entender a relação entre os sistemas que regem o organismo, da mesma maneira que as nações-estado se comunicam dentro do sistema internacional", compara o acadêmico.

Para muitos estudiosos, porém, Relações Internacionais é um grande caldeirão vazio, sem conteúdo nem função definida. Em outras palavras, uma perda de tempo. Isso porque a área abrange tantas variantes, que fica difícil definir sua peculiaridade. Uma interpretação de RI pode incluir filosofia - Kant é sempre citado com o conceito que apelidou de "cidadão universal" - sociologia, economia, geografia, antropologia, matemática...E, acredite, cultura também.

Para compreender o sistema internacional, é preciso conhecer não somente as regras de cada Estado que o contempla, mas, principalmente, o indivíduo e sua relação direta com ambas vertentes. Niemeyer defende esse ponto de vista baseado na representatividade das etnias e civilizações. "A indiazinha pobre da Amazônia é uma cidadã brasileira, com seus direitos representados pelo Estado também em âmbito internacional? Ou, por não possuir cidadania brasileira, é um elemento totalmente isolado do sistema?".

É preciso chegar a esse nível de pensamento para entender RI? Soa estranho, mas o que eu gosto de comer tem importância para o sistema internacional. Meus hábitos, leituras, amizades, religião e os lugares que freqüento são um reflexo do que o Estado reivindica em meu nome nos encontros internacionais. Nem sempre é preciso essa intermediação para meu papel sobressair-se nas decisões tomadas pela ordem internacional. Pode parecer utópico que o indivíduo se relacione diretamente com o sistema, mas é uma hipótese plausível, e aí entra Kant, mais uma vez, com o seu "cidadão do mundo".

O professor Niemeyer cita um exemplo interessante. Soldados norte-americanos são recrutados para a guerra com mais facilidade do que seriam no Brasil. Muito mais, tanto pela tradição bélica da potência, quanto pelo conservadorismo e a noção de estrutura familiar brasileira, que relutaria em desmantelar-se para defender a "soberania nacional" de um Estado.

O papel do RI é fazer conexões justamente neste sentido: em pontos inimagináveis, porém hipoteticamente possíveis e nos quais ninguém havia pensado. É imaginar saídas lógicas pela lateral, porém, nunca óbvias. Aliás, a obviedade é o que menos importa em RI. Talvez por isso, os diplomatas e acadêmicos da área sejam carinhosamente apelidados pelas outras ciências como os reis da embromação.

É que o discurso do RI precisa navegar sempre por mares desconhecidos. Mas a área não enfraquece com esse ineditismo teórico. Pelo contrário, a teoria e as diretrizes existem, com o diferencial de não serem regra absoluta, mas apenas guias para a interpretação de um contexto X. Por exemplo, há diferentes escolas que norteiam o pensamento das Relações Internacionais, com destaque para a realista, que acredita no conflito quase sempre como única solução, e a idealista, que prioriza os acordos pacíficos em detrimento da guerra, mas não descarta a possibilidade de confronto em última hipótese.

Freqüentemente, realistas e idealistas podem ser tão relativos que suas linhas de raciocínio se cruzam, a ponto de enfraquecer a definição específica de cada uma. Em RI, não existe uma verdade absoluta, existem várias. Um exemplo: a segurança cooperativa. Na eminência de uma guerra, freqüentemente as partes envolvidas se equiparam, inclusive com arsenal armamentista, como aconteceu na Guerra Fria, para assegurar uma ordem pacifista, gerada pelo medo da guerra.

Ao invadir o Iraque, Bush foi absolutamente realista (como é regra na tradição norte-americana), já que utilizou a guerra como ferramenta de combate ao terrorismo e a destruição das supostas armas químicas e biológicas. No discurso em que justifica a ação, contudo, mantém uma postura idealista, ao defender valores como a liberdade e a paz internacional (alguém ainda consegue acreditar nisso?).

Diferente das outras ciências, as Relações Internacionais se norteiam por um conjunto de vertentes, e não por um campo fechado de análise, como a economia, pautada nos fenômenos matemáticos de mercado e algumas ciências humanas. Há quatro variantes básicas utilizadas como teoria para nortear qualquer análise em RI: política, econômica, estratégico-militar e étnico-civilizacionista.

Um exemplo prático: ao escrever um relatório sobre as exportações de fontes alternativas de energia para os EUA, deve-se levar em consideração não somente as vantagens econômicas dessa relação, como as alíquotas de importação e o preço do dólar, mas também a dependência norte-americana em relação ao petróleo, a tensão com a Venezuela, os conflitos no Oriente Médio e mais profundamente, a receptividade dessas novas alternativas dentro das empresas e instituições - e essa relação não está longe da noção de cultura comunitária e individual.

"O aluno de RI costuma ser feliz porque ele sabe que imagem não é tudo, diferente do que é ensinado em outros cursos. É um campo subjetivo, nada prático, baseado no 'blablabla', mas com um certo charme, é claro", definiu o professor Niemeyer em algum momento da conversa que durou quatro aulas, mas caberia por semanas sem cessar, tamanha é a capacidade humana para a abstração. Unir conhecimento concreto ao pensamento subjetivo é uma viagem para poucos. Os que se aventuram, no entanto, dizem que vale a pena.

Tais Laporta
São Paulo, 30/8/2006

 

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