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Segunda-feira, 28/8/2006 A despedida de Ingmar Bergman Marcelo Miranda
Sueco nascido em 1918, na cidade de Uppsala, Bergman teve forte formação luterana, por conta da rígida criação do pai. Isso influiria em toda a sua obra. Estudou em Estocolmo e iniciou carreira artística no teatro. Foi nos palcos que adquiriu boa parte dos conceitos e idéias que desenvolveria à perfeição no cinema - arte na qual começou como roteirista. O primeiro filme, Crise, data de 1945, desde então com as obsessões típicas que permeariam os filmes: religiosidade à flor da pele, pecado, culpa e morte, sempre a morte. Porque Bergman é, acima de tudo, um cineasta fúnebre, pesado, carregado de tristeza e desilusão. Não foi sempre assim: dirigiu comédias também, como o curioso Sorrisos de uma noite de amor (1955), inspirado em Shakespeare. Só que foi no drama que o status de gênio realmente tomou forma. Um de seus filmes mais emblemáticos e referenciados é O Sétimo Selo (1956), em que, ao retornar das Cruzadas, um homem se encontra cara a cara com a morte e, num jogo de xadrez, define o rumo da humanidade. Curiosamente, há otimismo no desfecho, o que vai contra muito do que Bergman costuma fazer, mas ainda assim resume boa parte das características do diretor. Morangos Silvestres (1957) veio logo em seguida, novamente tendo a morte como tema principal - na trajetória do velho que relembra grandes momentos de sua vida. O Rosto (1958) tem no título o que mais fascina o sueco: a face humana, as rugas, as expressões de amor, ódio, medo, frustração. Poucos cineastas dão tanto valor ao rosto, herança vinda provavelmente do dinamarquês Carl Dreyer e seu A Paixão de Joana D'Arc (1928). Os ângulos fechados acima do pescoço tiram quaisquer impressões de teatro que o cinema de Bergman ainda possa manter - já que, no fundo, ele encena na tela pequenas tragédias dramáticas, em linguagem que remeteria aos palcos não fosse a consistência e o impacto de sua câmera. Isso fica mais explícito em Gritos e Sussuros (1972), considerado por muitos (inclusive por este colunista) o auge de Bergman. Apostando na simplicidade de recursos, o sueco entrega às atrizes (as parceiras tradicionais Harriet Andersson, Ingrid Thulin e Liv Ullmann), auxiliadas pela fotografia avermelhada e pelos simbolismos da imagem e do som, toda a complexidade de uma crise familiar iniciada - como não poderia deixar de ser - pela aproximação da morte. Num processo de completa desintegração, Bergman descasca a personalidade de cada personagem, chegando a dissecar "como uma cebola", segundo o próprio roteiro, cada ruga do rosto de Liv Ullman, a atriz-fetiche, a musa maior, do sueco, mulher com quem ele inclusive se casou e teve filhos. Gritos e Sussurros é a grande prova de que o cinema pode conjugar arte e humanidade, dor e agonia.
Listar o que é obrigatório para ver de Bergman é impossível. Além dos citados, são indispensáveis O Silêncio (1962), Sonata de Outono (1978) e Persona (1966), este um dos mais maravilhosos e tristes estudos da personalidade feminina, resumidos na presença de Bibi Andersson e Liv Ullmann. Mas também Através de um Espelho (1960), A Hora do Lobo (1968) e Depois do Ensaio (1984) não podem jamais faltar. O ideal é simplesmente ver todos. Mas vale o aviso: nunca assista a um Bergman seguido de outro. Seus filmes têm pesos de concreto, batem fundo na alma e precisam sempre ser refletidos e digeridos por algum tempo. E chegamos a Saraband. Realizado com câmera digital exclusivamente para a televisão, teve uma exibição em canal sueco e chegou a passar em salas comerciais na França. Aqui no Brasil, foi direto para o disco doméstico, o que não significa que o filme não mereça atenção - existe uma falsa idéia de que filmes que vão direto para as locadoras se deram mal no exterior ou são tão ruins que a distribuidora não bancou nos cinemas, mas isso é uma outra história. Incrível como Bergman torna este seu dito filme final quase um epitáfio Liv Ullman olha para a câmera e relembra o passado. É assim o início do fim de Ingmar Bergman. Saraband retoma os personagens da minissérie (transformada em longa-metragem) Cenas de um Casamento e mostra uma espécie de epílogo de toda a cinematografia do diretor. A melancolia das imagens e diálogos de Saraband reflete situações de dor. O foco é a perda. Perda do amor, da inocência, da felicidade, da vida. Perda da vida, morte: é isso que realmente move os filmes de Bergman. Não é diferente aqui. A principal personagem não é Liv Ullmann, interpretando Marianne, ex-esposa de Johan. É Anna, a nora falecida de Johan, a mãe de Karin, a mulher de Henrik. Todos os personagens gravitam em torno dessa presença ausente, dessa defunta que deixou marcas profundas em cada um.
Desfecho que não se refere só a Saraband, mas ao próprio Bergman. Quando Liv Ullmann ressurge de frente a uma mesa, novamente a nos olhar, a câmera sufocante do diretor se aproxima daquele rosto enrugado e olhos lacrimejantes, como a assumir que a vida, apesar das batalhas pessoais, é mais cruel do que se quer reconhecer. No cinema de Ingmar Bergman, não é qualquer um que consegue atingir a sarabanda. Marcelo Miranda |
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