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Segunda-feira, 11/9/2006 Eu vejo gente morta Marcelo Miranda De forma alguma. Shyamalan criou uma grife própria. Apostou numa idéia simples e surpreendente para dar uma (saudável) rasteira no espectador e foi bem recebido por isso. Porém, assim como Orson Welles (pra ficar no maior de todos), seu primeiro grande filme pode se tornar a sua maldição. Afinal, depois de O Sexto Sentido, uma aura foi criada em torno do diretor/roteirista. Ele passou a ser cobrado. Tornou-se "garantia" de reviravoltas de roteiro. Quando se arriscou em Corpo Fechado, razoável parcela de cinéfilos se frustrou. Onde estava o clima de medo e tensão? Onde estava a ultra-super-mega surpresa que balançaria as cadeiras do cinema? O que estava na tela era meramente a triste saga de um homem que se descobre inquebrável e precisa conviver com isso. Mas Shyamalan foi perdoado. Quando lançou Sinais, seus fãs estavam secos pelo assombro de O Sexto Sentido. Ele veio, mas alguma coisa estava esquisita. Pastores em crise? Crianças asmáticas? Alienígenas sensíveis a água? Conta outra...
Quer saber? Como grande cineasta e autor que é, M. Night Shyamalan parece estar se lixando pra isso tudo. Só esse pensamento explica sua saída da Disney (a empresa do Mickey financiou seus primeiros filmes e não quis assumir as idéias do cineasta para o longa mais recente - o da fábula). Só esse pensamento explica a sua não-preocupação em ceder aos anseios do público e realizar o filme que quer, com as idéias que teve e do jeito que ele acredita ser o certo. Está aí A Dama na Água pra quem quer ver. Quem não quiser, não sabe o que está perdendo. Shyamalan é dos poucos diretores com personalidade em atividade na grande indústria de Hollywood. Neste exato momento, das produções em cartaz, só um nome talvez rivalize com ele: Michael Mann, com seu explosivo e sensacional Miami Vice. Cada um à sua forma, ambos defendem idéias próprias, têm estilos reconhecíveis e não cedem às concessões típicas de quem trabalha numa máquina de cuspir filmes medíocres. Para Mann e Shyamalan, importa o que lhes faz sentirem bem, e não o que o público vá gostar. Isso não é ignorar quem assiste, mas assumir as próprias vontades e acreditar nelas. Alguém já disse: o bom diretor deve pensar no público, mas ele nunca deve pensar somente no público. Apesar de não ser a regra que rege Hollywood, ainda é assim que surgem filmes dignos dessa meca do dinheiro. O maior "problema" do cinema de Shyamalan é justamente O Sexto Sentido. Nunca ele conseguirá se igualar ou agradar tanto quanto conseguiu em 1999. Isso não o impede de mergulhar em outros conceitos, sem largar mão de um caminho determinado na hora de escrever um roteiro e dirigir uma produção. O cineasta tem as idéias muito claras e, seja trabalhando com garotos enxergando fantasmas ou religiosos atacados por ETs, ele carimba essas situações com um olhar muito próprio e incomum. Talvez o maior tema de Shyamalan seja a fé. É este sentimento que tanto seus personagens quanto os espectadores devem ter. Os primeiros, em relação às criaturas que o diretor coloca em seus caminhos; os segundos, em relação aos próprios filmes. Em O Sexto Sentido, o garoto Cole enxerga mortos. Cabe ao psicólogo Malcolm acreditar nele e, assim, chegar à verdade que move sua vida (ou morte). O segurança David nasceu com superpoderes e tem mais força do que qualquer pessoa no planeta, em Corpo Fechado. Ele precisa acreditar nessa informação para assumir seu verdadeiro papel no mundo que o cerca - incluindo aí o filho, que lhe é um estranho. O pastor Granham, de Sinais, deve crer em Deus e no destino se quiser salvar a família, a si mesmo e a memória da esposa. Com A Vila, Shyamalan muda os parâmetros, mas a fé ainda é recorrente: os patriarcas do vilarejo no meio da mata devem fazer com que suas crianças acreditem estarem vivendo em outra época, numa área absolutamente segura, longe da violência e com monstros que rondam a floresta.
Agora, Shyamalan nos aparece com A Dama na Água. Novamente, questão de fé: o zelador Jack precisa crer nas historietas infantis sobre ninfas aquáticas inspiradoras e salvadoras da humanidade para mandar Story de volta ao seu mundo. Só que, mais uma vez, Shyamalan subverte os próprios conceitos: nunca, num filme seu, os personagens acreditaram com tamanha facilidade nos acontecimentos que lhes acometem. E também nunca o diretor havia sido tão fantasioso, tão "sobrenatural", tão assumidor da imaginação. A crença mais necessária em A Dama na Água não é dos personagens, mas de quem os vê. O espectador precisa aceitar, logo de cara, estar entrando num (sub)mundo povoado por ninfas, cachorros-de-mato e águias gigantes. Shyamalan, como não podia deixar de ser, não faz isso de forma gratuita. Ele não quer que acreditemos em suas criações simplesmente por acreditar. Há uma cena recorrente em A Dama na Água: é a do personagem Jack calado e parado de frente a outra pessoa, a câmera posicionada quase ao chão em contre-plongée (filmando de baixo para cima), deixando Jack no fundo da tela a escutar o que o interlocutor lhe diz. É um plano-chave de um filme focado na palavra falada, nas histórias fantasiosas, nos contos de ninar. Shyamalan não mais parece um cineasta marcado pela desilusão, como mostrou em A Vila, mas pela esperança, como era nos trabalhos anteriores. Novamente, ele parte do individual para atingir o coletivo. O indiano usa um ser mitológico representando inspiração como forma de expiar as culpas dos personagens. E se Shyamalan era um cineasta essencialmente visual, em A Dama na Água vem à tona um caráter mais próximo da oralidade, da fábula, do diálogo aparentemente excessivo. Isso não deixa de ser um traço autoral no filme. Se o diretor se propõe a abordar a criatividade perdida partindo de contos infantis, nada com mais coerência que ele utilizar a palavra dita, e não mostrada. Pode-se considerar um equívoco a opção por verbalizar de forma talvez excessiva algumas situações no longa, mas não se pode dizer que isso seja uma simples falha de Shyamalan. Com a costumeira ousadia que o caracteriza, ele dá nova guinada na carreira e investe na expressividade oral dos atores e na encenação de uma linearidade próxima do clássico.
Marcelo Miranda |
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