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Sexta-feira, 8/9/2006
O ensaísta Machado de Assis
Celso A. Uequed Pitol

Além dos romances, contos, peças de teatro e poemas, Machado de Assis é também autor de uma importante obra ensaística, vasta o bastante para dividir um volume de Obras completas com sua correspondência pessoal e os artigos de jornal. Nisso, como em muito mais, ele acompanha outros grandes nomes da literatura ocidental: muitos romancistas e poetas de renome foram também grandes ensaístas. São típicos os casos de Camus, autor de um ensaio magistral, O Homem Revoltado, e de Miguel de Unamuno, cuja obra ensaística chega mesmo a superar a novelística. Para ficarmos no mundo hispânico, tomemos o exemplo de Borges, contista dos maiores e autor de textos fundamentais sobre literatura gauchesca, algumas tentativas interessantes em filosofia e um ensaio que, pela coragem de encarar e tentar resolver um problema histórico, vale por uma obra inteira. O ensaio é O escritor argentino e a tradição, talvez a mais conhecida tentativa de Borges nessa área. Armado de ironia, o autor de Ficções critica em certos escritores argentinos a pretensão de criar uma literatura nacional com histórias cheias de figuras típicas da Nação - a saber, animais e índios - e enredos banais imitados do Romantismo europeu. Como solução, Borges sugere que seus companheiros de geração se debrucem sobre a tradição literária do Ocidente e tentem escrever sem localismos nem expressões tipicamente regionais. Com isso, assegura ele, o escritor será argentino e também universal. Este ensaio é considerado como um conselho fundamental a todo escritor latino-americano e ombreia com o melhor da obra de Borges.

No meio destes gigantes, como se situa o nosso Machado de Assis? Sabemos que ele escreveu muitos ensaios, quase todos sobre literatura. Mas o que eles valem, exatamente? Será que figuram nessas nossas hipotéticas Obras completas apenas pelo seu valor documental, como uma espécie de registro de época, mero material complementar para uma história da cultura? E mais: podem, esses ensaios, pela sua qualidade e pelos temas abordados, resistir ao tempo?

Antes de tudo, é preciso definir o que Machado escreveu. O que é um ensaio? O termo vem do latim "exegium" e significava inicialmente "pesagem", "prova", e depois qualquer tipo de teste ou experimento que não leve a uma conclusão definitiva. O ensaio é, assim, o meio do caminho, o estágio que antecede a conclusão ou a tese final. Em literatura, é o gênero que lida com o pensamento já existente, modelando-o em novos contornos, experimentando associações e, ocasionalmente, lançando uma ou outra idéia original. É como uma semente lançada em solo fértil: se bem cuidada, regada, adubada, pode resultar em um pensamento vigoroso. No caso dos ensaios de Machado, podemos dizer, passado mais de um século de seu lançamento, que foram sementes muito boas, das melhores árvores européias, jogadas num solo pedregoso e - em todos os sentidos - inculto, incapaz de retê-las e frutificá-las, deixando-as à mostra para os pássaros que vez por outra passam. O que mais nos surpreende é que essas sementes parecem, em muitos casos, intocadas. Em outras palavras - deixando essas pobres imagens de lado - surpreendem pela atualidade.

Deixemos então as palavras falarem por si. Eis aqui o início do ensaio O ideal do crítico: Exercer a crítica afigura-se a alguns que é uma fácil tarefa, como a outros parece fácil a tarefa do legislador; mas, para a representação literária, como para a representação política, é preciso ter alguma coisa mais que um simples desejo de falar à multidão. Infelizmente é a opinião contrária que domina, e a crítica, desamparada pelos esclarecidos, é exercida em geral pelos incompetentes. O texto prossegue na mesma linha. Aponta a falta de formação da crítica brasileira, a falta de imparcialidade e a redução da atividade crítica à mera crônica dos acontecimentos literários ou à publicidade explícita. Eis um ensaio que poderia ser publicado na íntegra em qualquer jornal de hoje, se os nossos cadernos culturais tivessem coragem para tanto. A situação permanece intocada desde os tempos de Machado, ou, se chegou a melhorar em algum momento - e esse momento talvez se situe entre os anos 30 e 60, quando Otto Maria Carpeaux, Astrojildo Pereira e Augusto Meyer escreviam em nossos jornais - agora voltou ao mesmo nível do Brasil escravocrata e rural do século XIX.

O mesmo não se pode dizer do ensaio O romance, donde se extrai o seguinte: o romance domina a consciência literária nacional. Nesse ponto, não estamos junto com o Brasil de Machado, mas bem antes, junto, talvez, do Brasil dos tupinambás, das onças pintadas e dos jabutis. Voltamos para a época do iletramento, já que nem romances lemos mais: os poucos livros que dominam o top ten literário pertencem à auto-ajuda e à culinária, e o velho romance disputa um terceiro posto com as biografias de celebridades e os livros de piadas. Além disso, o tipo de romance de que aqui falamos não é exatamente o que Machado tinha em mente, já que cita autores franceses, como Gerard de Nerval e Victor Hugo, enquanto as preferências do leitor brasileiro atual variam entre as estrelas nacionais - Paulo Coelho e afins - e as anglo-americanas - Danielle Steel, John Grisham e outros do mesmo gênero. Mera questão de nacionalidade, como se vê.

Felizmente para nós, a importância destes ensaios para o leitor de hoje não se deve apenas à inércia dos brasileiros, que não foram capazes de promover mudanças substanciais na vida cultural do país. O Passado, o Presente o Futuro da Literatura, ensaio longo, dividido em três partes, traz observações interessantes sobre teoria literária e a formação da literatura brasileira em meio a farpas direcionadas a seus companheiros de época e que valem para os nossos contemporâneoa. Pode ser lido ainda hoje, sem reservas.

É esse o caso daquele que é tido e havido como o mais importante ensaio de Machado, o clássico Instinto de Nacionalidade: notícia da atual literatura brasileira, datado de 1873 e hoje leitura obrigatória nas faculdades de Letras do país. Machado investe pesado contra a tendência dos autores brasileiros em dar mais importância à cor local e às figuras típicas do país do que aos temas literários de apreciação universal, gerando obras que valem mais como "documento" do que como "monumento", na terminologia de Benedetto Croce. O termo define bem o que essas obras tentaram ser: "documentos" históricos de fundação da nacionalidade, espécies de Cartas de Caminha escritas por brasileiros. A pobreza artística é compensada pela sua habilidade em retratar eventos históricos e paisagens do país. E para os que vivem de citar o famoso dito de Tolstoi - "Queres ser universal? Canta a tua aldeia" -, Machado demonstra o que há de falso nessa dicotomia regional versus universal: Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região, mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.

Quem voltar os olhos para o primeiro parágrafo deste texto há de notar que Machado não está sozinho: tem a nobilíssima companhia de Borges, o europeu exilado entre americanos, o escritor que daria tudo para ter nascido em Yorkshire mas teve de se contentar com o subúrbio portenho, o aristocrata apolítico que preferia dedicar suas horas ao estudo do anglo-saxão, dos jogos matemáticos e de John Milton a aturar manifestações populares, o representante, enfim, da tradição contra os arroubos da barbárie iletrada louca para contaminar o impoluto mundo das letras. Um companheiro improvável, sobretudo quanto temos em mente que Borges considerava negros como Machado "inferiores em tudo" e "bucha de canhão" nas guerras dos brancos. Não sabemos se Borges leu Machado: não era particularmente interessado pela literatura dos países vizinhos. Se não leu, talvez se surpreendesse com o fato de que um mulato carioca, filho de escravos, tenha percebido a mesma coisa que ele e com uma antecedência de meio século. Se leu, há razões para crer que se trata de cópia: Borges cita as mesmas obras de Shakespeare que Machado citou para mostrar que o bardo de Avon não deixou de ser inglês por ter passado suas peças em lugares tão distantes quanto Verona e a Escócia. O mesmo se pode dizer das críticas aos nacionalistas, onde há, as mais das vezes, simples diferença de palavras, poucas, entre os dois escritores. Machado antecipa Borges e vai mais fundo ao propor uma mudança de atitude não só do escritor mas da própria crítica, incapaz de discernir entre o grande artista e o desenhista de paisagens. Deixa assim uma análise que, estendida hoje a outros setores da nossa cultura, da música popular ao cinema, tanto ganha em atualidade quanto em qualidade. E, num gênero em que a tentativa, o experimento, o manejo de idéias é a regra - e um experimento que muitas vezes não sobrevive à prova do tempo -, deixou uma peça definitiva da literatura brasileira.

Celso A. Uequed Pitol
São Paulo, 8/9/2006

 

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