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Quinta-feira, 28/9/2006 Da arte de descobrir Jonas Lopes Em sua coletânea de ensaios Por que ler os clássicos, Italo Calvino enumera uma série de proposições que, em sua opinião, fazem de um livro eterno. Há, entre as razões citadas pelo autor italiano, algumas óbvias. Clássicos são aqueles que estão sempre sendo relidos, e não lidos; a cada releitura, rendem novas descobertas e interpretações; a fama de muitos deles precede a leitura; legam personagens tão marcantes que se tornam parte do cotidiano e do nosso vocabulário cotidiano - os Quixotes, Kariêninas e Bovaries. Uma proposição de Calvino chama a atenção: "Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los". Ou seja, não só de Hamlets, Metamorfoses e Casmurros nós vivemos. Muitas vezes um livro passa despercebido em seu lançamento, para ter sua genialidade reconhecida por meia dúzia de felizes e só mais tarde ser redescoberta e reavaliada. Para um bom leitor, descobertas dessas são tão prazerosas quanto adentrar um clássico renomado. Acabam de sair no Brasil duas obras assim. Ferdydurke, do polonês Witold Gombrowicz (Companhia das Letras, 2006, 352 págs., tradução de Tomasz Barcinski), foi originalmente lançado em 1938 e é considerado um tesouro perdido do modernismo europeu. E pela coleção Prosa do Observatório, da editora CosacNaify, sai a coletânea de contos O Cavalo Perdido e outras histórias (2006, 227 págs., tradução de Davi Arrigucci Jr.), do uruguaio Felisberto Hernández. Ambos chegam avalizados por grandes nomes: entre os admiradores de Ferdydurke, estão Milan Kundera, John Updike e Ernesto Sabato; Hernández tem como fãs os ilustres Julio Cortázar e Juan José Saer, fora Calvino. Não dá para entender como livros tão bons nunca tinham sido editados no país. Witold Gombrowicz (1904-1969) deixou a Polônia pouco antes da Segunda Guerra e passou 24 anos vivendo em Buenos Aires (detestava Borges, aliás). Ferdydurke, seu segundo livro e primeiro romance, é da estirpe satírica de Voltaire, Swift e Sterne - o crítico Daniel Piza arrisca a classificação "Brás Cubas polonês". A hilaridade começa já no título, que não significa nada. Susan Sontag, no prefácio, afirma que mais adequado seria o título do primeiro trabalho de Gombrowicz, Memórias de um tempo de imaturidade. O que faria mesmo todo o sentido, pois a imaturidade é a questão central do romance. Józio é um escritor que acorda convertido em um adolescente de dezessete anos. Surge um professor excêntrico que o seqüestra e o leva a um colégio, onde é submetido à "bumbumanização", ou seja, tratar um adulto como se fosse uma criança. Na escola Józio assiste a embates entre as turmas de alunos: aqueles que falam palavrões e sobre sexo e querem ser adultos versus os inteligentes que assumem a sua adolescência, sob o risco de serem moralmente massacrados pelos primeiros. Conhece um aluno blasé que ignora os dois grupos e assume uma posição independente; ele é um "moderno". Após uma disputada guerra de caretas, Józio é levado pelo professor à casa de uma família que o hospedará e ali continuará o seu processo de apequenamento/bumbumanização. Apaixona-se pela adolescente da casa, Zuta, outra "moderna", "fruto desta nova geração do pós-guerra, dos esportes e das bandas de jazz". Como se fosse o mais ávido dos pré-adolescentes, Józio utiliza-se de artimanhas para tentar conquistar Zuta e provar a ela que ele também é um moderno. A própria mãe da garota imita a filha para soar descolada e jovem. Ferydurke não é, como se pode pensar, um elogio à imaturidade. Também não prega a maturidade. Tanto um quanto outro são massacrados por Gombrowicz. O autor satiriza a estranha necessidade que temos de nos moldarmos de acordo com as necessidades, ou, pior, de acordo com as conveniências ou convenções. Somos todos Zeligs, o sensacional personagem de Woody Allen. Enquanto a mãe de Zuta e o professor de Józio representam os neo-Dorian Grays aterrorizados pela idéia de envelhecer, a jovem é um destes eternos Peter Pans, para quem "a juventude representava o único, aceitável e cabal período da vida humana". A crítica é ainda mais mordaz na terceira parte do livro, em que Józio e seu amigo Mietus visitam a mansão de uma família aristocrática. O grande sonho de Mietus é conhecer um legítimo camponês e viver como ele, "comer pão preto, montar cavalos em pêlo, caminhando pelos prados". Na mansão ele encontra em um criado essa figura que procura, e passa a adorá-lo e imitá-lo. É a velha adesão das classes altas ao proletariado, a condescendência incoerente, a ideologia sem fundamento, o altruísmo hipócrita que vêm direcionando a esquerda ao longo dos séculos. Com a trama de Józio, Gombrowicz intercala dois contos independentes - que seguem a linha da fábula satírico-filosófica sobre imaturidade - e dois respectivos prefácios. Em um deles, "Prefácio a 'Filidor forrado de criança'", estende o debate de Ferdydurke até a arte. Critica os escritores que se colocam acima das pessoas comuns, em uma posição de maturidade. Ao invés de se preocuparem em estudar e desenvolver a própria obra, os "meio-Shakespeares" ou "um quarto de Chopins" chafurdam na pose e na falta de talento. Querem, mais do que ser artistas, estar artistas. O autor polonês ensaia ainda uma pertinente defesa do escritor secundário - aqueles que não pretendem ser o novo Joyce ou o novo Guimarães. Assim ficaríamos livres dos pseudogênios e eles parariam de perder tempo criando obras medíocres, "impondo-a aos outros e consolando-se com êxitos pobres e secundários (...) tentando persuadir a si próprios - e a outros - a produzir mais e mais disfarces para sua própria incapacidade". Witold Gombrowicz prega a honestidade de pensamento para que o homem "se salve de sua rigidez exterior e consiga conciliar a ordem com a desordem, a forma com a falta de forma, o direito com a anarquia, a maturidade com a eterna e sagrada imaturidade". Afinal, nada mais patético que os eternos adolescentes. Ao mesmo tempo, um pouco de bumbum não faz mal a ninguém. A literatura nunca foi a atividade principal de Feliberto Hernández (1902-1964): ganhava a vida dando concertos de piano em buracos no interior do Uruguai. Em seus contos escritos em primeira pessoa, os narradores são sempre pianistas ou escritores - difícil, portanto, não buscar neles elementos autobiográficos. Como observa Cortázar, jogar a literatura de Hernández no balaio fantástico latino-americano é arriscado, senão equivocado. O enfoque está mais nas esquinas e cantos cegos do inconsciente - a inevitável carga onírica resvala no surrealismo; daí tacharem de fantástica a obra do uruguaio. Nada aqui lembra as cidades exóticas e coloridas de outros autores latinos. As narrativas são fragmentárias, indecisas, em tons menores. O conto que dá nome a O Cavalo Perdido lembra Proust pela investigação dos efeitos do tempo e das armadilhas da memória. Um homem relembra suas aulas de piano em criança, a paixão opaca pela professora, a relação com os móveis de casa dela. O fluxo memorioso fora motivado uma noite qualquer, após inaugurar-se nele "uma função sem anúncio prévio". Surge no quarto um sósia do narrador, que nada mais é do que ele próprio criança, o pequeno aspirante a pianista. As aventuras de Hernández pelos labirintos da memória são mais pessimistas que a de Proust, entretanto. Enquanto o francês transformava detalhes ínfimos do passado em motivos épicos e redentores, o narrador de "Cavalo Perdido" sofre ao confrontar-se com suas recordações. Sua antiga inocência deu lugar ao cinismo, "um sorriso de prestamista". Ele já não é alguém cujo sorriso tarda a se cansar ou se deformar. Agora, pune-se ao falhar no piano. Há remorso, nostalgia: "os encantos do menino foram maiores que os do homem, e porque a vida encantava mais ao menino que ao homem". Os solitários personagens se entregam a expedientes bizarros, e por eles deixam-se carregar. Um vendedor de meias descobre a fórmula do sucesso forçando o choro na frente de clientes. Uma viúva mantém a casa inundada, pois acha que deve cultivar suas recordações "em qualquer água do mundo". Por que eles fazem isso? Em "Ninguém acendia as luzes", uma moça pergunta ao autor/narrador por que a personagem de seu conto se suicida. "Seria preciso perguntar para ela", ele responde. "E o senhor não poderia fazer isso?", retruca a garota. "Seria tão impossível quanto perguntar alguma coisa à imagem de um sonho". Como os sonhos, que costumam desaparecer quando acordamos, para então se alojarem na memória, as pequenas sonatas que são as narrativas de Felisberto Hernández transitam entre a consciência a inconsciência do leitor. Quando vêm, contudo, seus acordes introspectivos não nos deixam assim tão facilmente. Para ir além Jonas Lopes |
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