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Segunda-feira, 9/10/2006 Simplicidade: um objetivo cultural Ram Rajagopal "O que é preciso é ser-se natural e calmo Para ser grande, sê inteiro" Fernando Pessoa (A seguir, um texto inspirado numa frase dita a mim anos atrás: "Quem gosta de jazz não pode gostar de rock. Não é consistente"...) Ser natural, ser inteiro, é sem dúvida uma busca válida em qualquer atividade criativa. A expressão artística é em parte a busca pela expressão natural de idéias, emoções, sonhos. O que não está tão claro é: como podemos chegar a esta expressão? O caminho é a simplicidade. Ser simples não significa ser simplista. Simplicidade não implica reducionismo. Pelo contrário, a simplicidade é sempre conseqüência de uma profunda compreensão, uma profunda conexão com uma idéia ou experiência. Observo que atualmente há uma busca incessante na arte, por uma expressão sofisticada de idéias e emoções. Talvez até pela sofisticação superficial da vida moderna, com seus excessos de informação e experiências sensoriais. No entanto, esta sofisticação, em geral, esconde falta de conteúdo, ou mesmo uma expressão meramente mental e impessoal de uma idéia. Tal concepção está tão enraizada em nossa sociedade que abandonamos algumas maneiras simples de transmitir idéias e emoções, como contar uma história. Alguns dos grandes filósofos da antigüidade expuseram seus insights filosóficos sob forma de pequenas parábolas, que podem ser lembradas, celebradas e compreendidas por qualquer pessoa que tenha um pouco de imaginação e curiosidade. A idéia por trás das parábolas nunca foi ofuscar uma idéia ou conceito. Nunca foi de se propor um significado esotérico para uma experiência concreta. Pelo contrário, a parábola é o mensageiro mais claro, mais colorido, de um conjunto de idéias que o contador deseja passar. E serve de fonte de inspiração para que cada um encontre também seu significado naquelas idéias e emoções. O fim da tradição dos grandes contadores de história no Ocidente coincide com uma excessiva intelectualização da sabedoria e conhecimento, que acaba por separar o homem comum deste mundo incrível e importante. Sem meias palavras, se trata de uma elitização do mundo da arte e do conhecimento, para se tornar a reserva de alguns poucos que podem assim, do alto de suas torres de marfim, receber para si todos os benefícios que se observam do acesso a estes poderosos tesouros. A elitização esconde também um dano mais profundo ao nosso estilo de vida: o abandono da simplicidade. A ofuscação do pensamento, da expressão da emoção, como norma da expressão cultural e social, tem como conseqüência a formação de indivíduos com pouca capacidade para expressar o que pensam e sentem, com pouca capacidade de entenderem a si mesmos, e a partir disso construir o seu caminho para vida. A complexidade artificial das metrópoles urbanas esconde justamente o superficialismo interior de seus habitantes. Presos a teias complexas de idéias e conceitos, de expectativas e imposições sociais, seus habitantes não encontram nem mesmo na arte, no conhecimento, a válvula de escape, ou melhor, a saída para construírem uma vida mais saudável, mais provida de cor, e mais sincera consigo mesmos. A própria idéia de que você pode ver e expressar suas idéias e emoções de maneira simples é considerado um sacrilégio, ou ao menos jamais é força motriz dos lugares onde aprendemos a aprender, como na escola, universidade e até em casa. Ser simples, ou pensar simples, é ser capaz de extrair uma compreensão pessoal de toda idéia, de toda experiência. Simplicidade é a base para originalidade. Porque só somos originais em um campo, quando desenvolvemos nossa própria visão daquele campo. E nossa própria visão só se desenvolve, só surge, quando conseguimos estruturar dentro de nós mesmos uma compreensão simples da área, ou das idéias que a embasam. Na expressão da arte, a simplicidade tem importância maior ainda. Todo grande artista expressa através de sua arte a sua compreensão simples de mundo. Do seu mundo e de suas emoções. A arte surge no artista não só como resultado de uma reflexão mental, intelectualizante, mas em grande parte devido a saltos intuitivos de compreensão e expressão. Ser simples é saber transmitir o que se pensa e sente de maneira que outros possam ter a mesma experiência. Se não somos simples, raramente conseguimos entrar numa obra. Somos imediatamente contaminados por idéias e conceitos que se impõem ao impacto natural do que se observa. Os grandes momentos de contato com beleza, arte e conhecimento em minha vida aconteceram justamente na ausência momentânea de conceitos, ou de complexidade mental. A compreensão, a absorção da arte sempre acontece em três fases. Num primeiro momento, o primeiro contato com a obra, gera emoções profundas em nós, através de um impacto que raramente é baseado em investigações analíticas. Pelo contrário, é contato simples e direto com a beleza da arte. Para se vivenciar a arte, este nível de pensamento é suficiente. Posterior a isso, criamos idéias e conceitos para tentarmos compreender melhor o impacto daquela obra particular em nós mesmos. Mergulhamos profundamente em uma teia complexa de idéias, de nomes, de conceitualização da experiência através do conhecimento existente. Ao final deste processo, um certo tom analítico, um padrão de categorização, baseado em critérios complexos e em geral verbais, é construído. É neste nível que se encontra a maior parte da expressão artística que tenho observado recentemente. No entanto, um terceiro passo, um terceiro degrau é necessário para aqueles que desejam aprofundar o conhecimento: destruir a teia complexa e conceitual desenvolvida no passo anterior, formando uma compreensão própria e simples da experiência. Somente quando seu entendimento é baseado em simplicidade é que você consegue ser somente um apreciador da arte para se tornar um artista verdadeiro. Simplicidade é a verdadeira compreensão. Mas para artistas e apreciadores presos em intelectualismos, presos ao segundo momento de absorção da arte, a arte se torna morta. Deixa de ter o impacto emocional, que surge como apreciador, e jamais chega ter o êxtase criativo, daquele que compreendeu e simplificou a sua expressão intelectual e emocional. Tome o caso de uma pessoa que gosta de dançar. Ao ouvir uma música, se a música a toca, a pessoa se põe a dançar no seu quarto, sem muitas regras para si, profundamente conectada com aquele primeiro impacto emocional do que ouve. Esta seria a primeira fase, a apreciação simples da arte. Talvez o interesse pela dança seja tal que a pessoa decide estudar em uma escola de dança. Aprende passos, técnicas, movimentos prontos, a origem das técnicas, a comparação entre várias técnicas. Enfim, aprende a padronização e a terminologia em que a arte da dança está sendo estudada na nossa sociedade atual. Mas se a pessoa pára aí, sem ir além, ela acaba por perder a naturalidade de dançar sem passos ou de apreciar uma dança pela emoção, e se torna uma mera intelectual na arte. Nada mais a emociona, porque há uma teia complexa de idéias de outros que contaminam sua visão própria. Ela se torna uma dançarina padrão, sem nada mais a oferecer. No entanto, quando decide desembaraçar a teia do que aprendeu com sua própria simplicidade e criatividade, quando cria sua própria visão da escola onde estudou, a pessoa é capaz de se tornar um gênio da dança, de expressar com profundidade e leveza suas emoções. Ela é capaz de dançar dentro das regras, indo além das regras. Ela passa a ser capaz de gerar a mesma emoção que sentiu, ao ouvir a música, em outros. Justamente por termos nos tornado uma sociedade presa a esses intelectualismos, que a arte de contar histórias, a arte de emocionar por música, está cada vez mais relegada a segundo plano pela elite dos financiadores da arte. Em contrapartida, a internet permitiu, aos poucos, o surgimento dos grupos de pessoas que desejam se expressar sem estar presos a esse jogo de complexidade. Aos poucos, aqui e ali, ainda que raramente, se observam reações populares a essa verdadeira apnéia da arte. Para nos tornarmos uma sociedade universal, temos que voltar a apreciar o valor profundo da simplicidade, de contar histórias, de ouvir músicas pela emoção de se ouvir música - sem passos pré-programados, sem regras. Uma reação negativa a essa complexificação artificial, hoje na sociedade, é o simplismo. É a destilação simplista, preto no branco, da arte, do conhecimento. São os líderes populistas que demonizam ou endeusam certas idéias em detrimento de outras. São as produtoras direcionadas para pontos no Ibope, sem se preocupar se a televisão está chegando a algum ser vivo em frente da tela. São todos aqueles que usam a arte e o conhecimento como proselitismo, para criar autômatos que comprem suas idéias e conceitos. E não pensem que isto se reduz a "arte popular" - um termo intelectual que mais discrimina do que esclarece - ou a populações menos abastadas. Pelo contrário, a lavagem cerebral, o proselitismo como meio de vida atinge principalmente a classe média, que diretamente financia pessoas que fazem isso, por pura incapacidade de desenvolver uma visão simples e própria de seus gostos e idéias. Mas como voltar à simplicidade? Explorando por conta própria o mundo do conhecimento e da arte, sem ter respeito excessivo por nomes, títulos e opinião de especialistas. Confiando em sua própria emoção, no seu taco para entender a si mesmo, como a única bússola para navegar neste mundo fantástico. E aos poucos redescobrindo prazeres simples, como ouvir uma boa história ou ouvir uma música que toque profundamente. Não é através de uma revolução. Mas sim de uma evolução em pequenos passos, que culmina na crença profunda de que seus pensamentos e sentimentos valem a pena, que você pode ser, sim, seu próprio guia. Ram Rajagopal |
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