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Segunda-feira, 23/10/2006 Pagando promessas na terra do sol Marcelo Miranda Uma retrospectiva de quase toda a obra de Glauber Rocha está mobilizando o Cine Humberto Mauro, no Palácio das Artes, aqui em Belo Horizonte. Numa parceria com o Tempo Glauber - entidade sediada no Rio de Janeiro que cuida do acervo e memória do diretor -, a coordenação do cinema vem exibindo desde a semana passada grande parte do que o baiano realizou, entre curtas e longas-metragens. E então fui rever Deus e o Diabo na Terra do Sol, marco da cinematografia de Glauber, epopéia social e política que ainda hoje mexe com as emoções de quem assiste. Ver na tela grande, então, é de lacrimejar. Mas o que me fez aparecer com este assunto aqui é uma curiosidade que apenas agora me veio à cabeça. Pode ser que outros já tenham falado disso, às vezes existem livros sobre o assunto, estudos, teses e sabe-se lá o que mais. Eu admito que apenas agora me dei conta do quanto Deus e o Diabo na Terra do Sol é semelhante a O Pagador de Promessas. Dirigido por Anselmo Duarte e lançado em 1962, esta adaptação da peça de Dias Gomes ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes daquele ano, feito máximo do cinema brasileiro jamais igualado. São filmes, a princípio, muito diferentes. O de Anselmo utiliza certo classicismo formal na narrativa e linguagem; o outro é um apanhado de imagens e montagens ideológicas. Um foi dirigido por um ex-galã de estúdios, em especial da Vera Cruz; o outro tinha no comando um artista enfezado, porreta, disposto a desbancar os poderosos em nome de sua utopia. Isso, para não falar em outras diferenças aparentes no simples assistir de cada filme. Então, onde estão as semelhanças dos filmes? Antes disso: por que relacioná-los? Ora, apesar de pouca gente reconhecer, O Pagador de Promessas está, de certa forma, inserido no Cinema Novo. Anselmo Duarte participou da reunião de diretores que "criou" o termo imortalizado ao longo da história. Ele era membro da turma, cineasta insatisfeito com os rumos da arte brasileira e disposto a participar desse movimento cujo objetivo era criar um novo tipo de olhar na tela. Pois fez O Pagador..., causou impacto, foi a Cannes e ganhou. Acabou sendo a maldição de Duarte. Nunca mais ele conseguiu os apoios que buscava. Passou a ser enxergado como um intruso entre os cinemanovistas. "Nós aqui, fazendo política com imagens, vai esse galãzinho adaptar uma peça de teatro e leva o maior prêmio do cinema?!", pareciam bradar. Anselmo, rancoroso e irritadiço, largou pra lá a confusão e seguiu em frente - para jamais conseguir um grande sucesso como aquele que o consagrou. Apesar de terem trilhado caminhos tão distintos, O Pagador de Promessas e Deus e o Diabo na Terra do Sol têm curiosas semelhanças. A começar por serem os segundos projetos em longa de seus realizadores. Glauber fizera Barravento anos antes, já demonstrando a verve combativa; Anselmo dirigiu a comédia Absolutamente Certo, brincadeira com a chanchada e de singela ingenuidade. Depois, quando ambos partiram para o próximo trabalho, escolheram histórias de cunho político, religioso e social. Deus e o Diabo... tem na figura de Manuel o homem injustiçado pelo poder, o rebelde que foge desembestado em busca de alguma resposta. Depara-se, primeiro, com o sincretismo e a fé inabalada no poder de Deus; depois, torna-se cangaceiro e enxerga na figura do "diabo loiro" Corisco a índole do terror e da luta física. No fim, não escolhe lado algum e decide, ele mesmo, definir um caminho. Em O Pagador, o protagonista é Zé do Burro. Homem simples e humilde, vai a pé até a cidade. Carrega nas costas uma cruz de madeira, a fim de cumprir a promessa feita a Iansã que, supostamente, salvou seu burrico. Na porta da igreja, é barrado pelo padre, que não admite um homem do candomblé entrar em seu templo católico. Zé não admite a recusa e se fixa nas escadarias da igreja. Atrai jornalistas, políticos e cafetões em busca da capitalização de sua inocência. Uma leitura lado a lado dos filmes ainda pode permitir a percepção de rostos conhecidos. Othon Bastos interpreta personagens importantes: com Anselmo, ele estréia nos cinemas na pele de um jornalista encarregado de descolar uma grande matéria em cima da história de Zé do Burro; com Glauber, toma a tela de assalto como um alucinado e rodopiante Corisco, cangaceiro parceiro de Lampião que brada e corre a defender a barbárie em nome da justiça. Geraldo Del Rey é outro a aparecer duplamente. Em O Pagador de Promessas, surge como um cafetão que dispensa a prostituta vivida por Norma Bengell e tenta seduzir a inocente Rosa (Glória Menezes); na terra do sol de Glauber, Del Rey é Manuel, protagonista do filme, homem dividido entre a pregação e a danação. Na diferenciação que caracteriza cada filme, a maior entre os dois em questão, além da discussão sobre linguagem, conceito e montagem, deve ser, afinal, a forma de olhar para o futuro. Em Glauber, existe uma esperança muito poderosa de que, agindo, deixando de lado a passividade, o homem comum pode atingir seus objetivos e destronar os poderosos. Pode transformar o sertão em mar. Já em Anselmo, este mesmo homem comum parece fadado a sucumbir ante os poderes estabelecidos, a não resistir à pressão de gente que se assume maior que o próximo, gente que leva ao limite uma imaginária cadeia de forças - e lutar contra tal cadeia parece apenas provocar mais dor. Irônico que Anselmo Duarte, com seu triste O Pagador de Promessas, tenha seguido caminho parecido ao de seu protagonista, caindo em desgraça quando achou que estava por cima. E Glauber, este gigante, plantou sementes de esperança e, mesmo morto precocemente em 1981, deixou florescer um cinema ainda hoje reverberado. O que importa, em suma, nem é se um ou outro filme possa ser melhor que o outro. Ambos, cada um à sua maneira, são grandes tratados imagéticos e ideológicos que se complementam. Marcelo Miranda |
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