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Quinta-feira, 30/11/2006
Obrigada, daktaris
Adriana Carvalho

Quando eu tinha uns catorze anos, eu queria ser veterinária. Depois abandonei a idéia porque percebi que meu negócio não era dar injeção em poodle, embora minha mãe me chamasse de "São Francisco" por levar para casa todos os gatos e cachorros estropiados que encontrava na rua. Eu queria era ir para a África defender os rinocerontes como o Daktari, o veterinário de uma série de TV que passava no século passado.

Alguns anos depois desisti desse projeto e decidi que seria escritora. Gostava de ler e às vezes passava dias trancada no quarto com os livros. Foi assim que devorei alguns poucos clássicos, como O morro dos ventos uivantes - que tinha uma palavra que eu achava muito engraçada (charneca) e uma passagem chocante para uma defensora dos animais em que alguém matava toda uma ninhada de gatinhos recém-nascidos - e uma montanha de volumes da Agatha Christie e do Sherlock Holmes.

Uma vez meu pai me deixou de castigo, nem lembro o motivo, e eu, como qualquer adolescente petulante, falei "não tô nem aí" e me diverti mesmo sem poder sair de casa, escrevendo uma história sobre uma churrascaria onde os garçons se aproximavam dos clientes com aqueles espetos cheios de carne num crescendo de suspense ao som da música do Tubarão.

Meu gosto por leitura me rendeu na rua onde morava o apelido de "esquisita". Acho que era mesmo, porque ao invés de chorar nas cenas de romance no cinema eu segurava as lágrimas na cena que a biblioteca pega fogo em O nome da rosa e ficava catatônica diante da fogueira de livros em Fahrenheit 451.

Quando chegou perto da época do vestibular, eu comecei a pensar: não tem faculdade de escritor, então o que é que eu posso fazer? Jornalismo foi a resposta. Entrei na universidade e, com exceção das aulas de alguns poucos professores, tinha a clara impressão de estar comprando meu diploma a prazo.

Aprendi a profissão na prática e aos poucos fui solidificando na minha mente que ser escritora era uma idéia tola da puberdade. Afinal, quem é que vive de literatura no Brasil e outros chavões do tipo? O tempo passou e o motivo inicial de ter ingressado no jornalismo ficou lá, amarelando, no fundo da cabeça. Fui me apaixonando pela profissão, embora ao mesmo tempo torcesse o nariz para muitos veículos nos quais trabalhei.

Até que um dia eu fui ao médico, ou melhor, médica. Foi a primeira consulta com a santa Dra. Fátima, minha homeopata, que hoje é médica de toda a minha família. Como se sabe, os homeopatas fazem muitas perguntas na primeira consulta, e entre elas a Dra. Fátima me perguntou qual era minha profissão e por que eu a havia escolhido.

Eu respondi que era jornalista e expliquei com um sorriso meio envergonhado: "imagina só que bobagem, comecei nisso porque queria ser escritora". E ela, séria, contestou: "bobagem por quê?". Ora, bobagem porque ninguém vive de literatura neste país e tudo mais. "E o que te impede de trabalhar e nas horas livres escrever o que tem vontade?", perguntou ela. Fiquei sem resposta.

E foi aí que percebi que não precisava ser o Gabriel García Márquez (quem dera!) para escrever ou para sobreviver. Podia ser eu mesma, com meus pequenos contos, minhas crônicas, no tempo (curto, é certo) de que disponho. Mesmo com essa iluminação, eu, capricorniana teimosa, ainda desconfiei. Era uma opinião médica, mas será que era verdade mesmo?

Ainda se passaram mais um par de anos e eu comecei a fazer terapia. E não é que repito com o santo e paciente Waldemar quase que literalmente o mesmo diálogo que tive com a homeopata? "Por quê não escrever?".

Vencida a teimosia, comecei a resgatar os velhos cadernos onde escrevia a mão os meus contos, soprei a poeira das páginas do livreto onde anotava frases interessantes que ouvia na rua, idéias que pretendia encaixar um dia em algum texto. Ensaiei alguns parágrafos novos, desta vez no computador.

Aí veio a segunda iluminação: a internet! Santas editoras, Batman! Então não era preciso necessariamente publicar um livro pra ver os textos divulgados, e ainda dava pra ler muita coisa boa de outros com a mesma paixão que eu!

Fucei sites brasileiros e portugueses de literatura e um dia uma amiga me indicou o Digestivo Cultural. Um amigo dela, que mora em Londres, já escrevia e adorava participar. Vasculhei de alto a baixo e, alguns dias depois, escrevi um texto sobre os produtos absurdos lançados para a Copa do Mundo.

Desde então conheci muita gente legal, mesmo sem nunca ter encontrado pessoalmente. Coisas de internet.

Sempre acho muita coisa boa pra ler, como o ensaio do Irineu Franco Perpetuo (que foi colega de faculdade) publicado recentemente, as entrevistas, as colunas. Até já viajei pelo Digestivo, o que foi uma delícia: um fim de semana em uma cidade linda nas montanhas, ouvindo boa música.

Tento me disciplinar para escrever mais e com mais freqüência, porque me faz um bem danado. Preciso também despistar muito o senhor Superego, que fica censurando o que escrevo, dizendo que é tudo clichê ou que um bom cristão não escreveria isso (e eu nem sou católica).

Enfim, só tenho que agradecer ao Digestivo pela experiência que estou tendo e aos meus daktaris (palavra que quer dizer "doutor" em um dialeto africano) por me ajudarem a resgatar um ideal que eu julgava morto. Daktaris porque afinal, embora eu pertença ao gênero humano, não deixo de ser um animal; e esquisito, ainda por cima.

Adriana Carvalho
São Paulo, 30/11/2006

 

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