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Quinta-feira, 23/11/2006 Um texto com esmalte vermelho Adriana Baggio Ah, o prazer de falar de si! Mesmo quando a gente não tem essa abertura ou possibilidade, é difícil resistir à tentação de colocar um "eu" no meio do texto. Por isso, esse convite para escrever sobre minha experiência no Digestivo é como uma travessa de pudim de leite, uma panela de brigadeiro, uma barra de chocolate. Posso me esbaldar sem culpa e alimentar o ego, esse serzinho exigente e insaciável. Nós, colunistas digestores, sempre tivemos permissão para a subjetividade, desde que ela acrescentasse algo ao assunto e fosse interessante para os leitores. Acho que deu certo, porque os relatos de experiências pessoais sempre foram grandes hits do Digestivo. E eu, como uma das mais antigas colaboradoras, já acompanhei muitas dessas verdadeiras colunas best-sellers. Antes, até com uma certa inveja: como essas pessoas têm tanta coragem de se expor? E depois, mais "digestivamente" amadurecida, com a sensata constatação de que cada um tem seu estilo e que a gente não deve subvertê-lo apenas para angariar mais leitores. Essa fidelidade ao estilo não tem a ver com ideologia e nem com valores muito nobres. O motivo, na minha opinião, é mais estético. É como pintar as unhas dos pés de esmalte vermelho. Para ficar sexy e elegante, a mulher precisa ter porte, estilo, personalidade. O mesmo acontece com quem escreve: escancarar a vida pessoal cai bem em quem tem atitude para isso. Nos mais reservados, parece farsa, e os leitores percebem quando estão sendo manipulados. Eu me vejo no grupo dos mais discretos - questão de estilo. Às vezes, falo de coisas sérias, "inteligentes" e de uma forma conciliadora. Pronto, é a receita para atrair poucos leitores. Olho o contador ao lado da coluna e ele não passa de 200, 300. Em outros dias, porém, surge a inspiração para tratar de um tema polêmico ou enveredar por caminhos mais perigosos. Voltando à comparação, seria como acordar poderosa o suficiente para encarar o esmalte vermelho nos pés e toda a responsabilidade que pesa nos ombros das mulheres de unhas rubras. É natural que textos mais picantes, polêmicos ou de auto-ajuda atraiam um número maior de leitores. Os meus top ten tratam de sexo, mulheres, de casamento, de Google e de Orkut - os assuntos campeões de audiência em nossos dias. Fico feliz por, algumas vezes, até prestar um serviço de utilidade pública. Minha coluna sobre cruzeiros marítimos sempre atrai interessados em receber dicas de viagem, que eu dou de bom grado; a do casamento já serviu de inspiração para uma noiva e as orientações sobre o Google ajudaram alguns blogueiros a sair do anonimato. O tal do ego fica feliz em saber que conseguiu ser importante. E é ele também que sofre quando ninguém dá bola para o texto, ou quando pedem alterações. No Digestivo, esse último caso praticamente não acontece. Temos muita liberdade para escrever e, desde que a gente não atire muito fora do alvo, nosso editor, o Julio, é bastante generoso. Não posso dizer o mesmo dos clientes atendidos pelas agências onde trabalho. Eles têm um prazer sádico em mexer no texto, 90% das vezes sem necessidade e com resultado pior do que o original. Será que todo mundo que escreve tem essa relação afetiva com o texto? Escrever, mesmo que "por dinheiro", sem aspirações artísticas ou literárias, parece ser uma forma de expressão da subjetividade. Uma subjetividade que não está relacionada ao conteúdo do texto ou às idéias do escritor. A presença do "eu" está na forma: o estilo, a escolha das palavras, o jeito de pontuar as frases. Mexer nisso é como pedir para você mudar de opinião, de time, de comida preferida. Se você é modelo, talvez tenha que tingir ou cortar o cabelo - uma das expressões da nossa identidade - para conquistar algum trabalho. Se você é escritor/redator/jornalista, talvez passe pelo mesmo processo, com vírgulas no lugar do cabelo. Talvez essa dependência pelo ato de escrever explique porque estou há mais tempo no Digestivo Cultural do que com qualquer emprego ou namorado. Já são mais de cinco anos colaborando, enquanto que o meu relacionamento mais longo - o atual, ainda bem - está no 4º aniversário, e o trabalho mais duradouro apenas passou um pouco dos dois anos. Alguém pode dizer que a escrita não depende de estarmos vinculados a um site, editora ou qualquer outro meio de publicação. E o ego, onde fica? Quem escreve o faz para ser lido. Essa história de botar as idéias no papel para poder desabafar talvez funcione como terapia, mas não resolve o problema do escritor. Tanto é verdade que muita gente transferiu seus diários para os blogs - com certeza, não por causa da ferramenta, e sim pela possibilidade de ter alguém lendo o que escreve. Não sei dizer se a virtualidade é a causa de o meu relacionamento com o Digestivo durar tanto, ou se isso só torna a façanha da estabilidade ainda mais meritória. Fazer parte dessa equipe é algo importante na minha vida. Posso até arriscar dizer que o início da fase em que estou hoje coincide com minha estréia no Digestivo. Sempre me vi às voltas com as letras. Primeiro, eu lia muito. Depois, descobri que também gostava de escrever. Meus pais adoravam meus cartõezinhos de Natal. Uma grande frustração foi ter perdido um concurso na escola porque a poesia que eu escrevi estava em forma de prosa. Até assumir que eu gostaria de viver dos meus textos, levou algum tempo. E como se fala em marketing, aproveitei uma mudança de cidade para me "reposicionar" profissionalmente. Como ninguém me conhecia na nova cidade, me apresentar como "redatora" foi fácil. No meio desse processo, acabei encontrando o Digestivo. Não consigo lembrar como nem onde. Horas navegando na internet me levaram até o site e algo me fez ter a coragem de pedir para ser aceita como colaboradora. Depois de um texto-teste, sobre o filme Náufrago, passei a escrever regularmente. Isso foi no começo de 2001, quando o Digestivo Cultural tinha apenas alguns meses. De lá para cá, já são mais de 130 colunas. Ultimamente, não tenho colaborado com a regularidade que eu gostaria. Só um tema atraente como esse - falar de mim - para me tirar da inércia e fazer com que eu dedique algumas horas para escrever. Enquanto isso, alguns textos do trabalho ficam de lado. Ah, deixa eles pra lá. O cliente vai mudar mesmo, meu ego vai ficar ferido e o estresse vai estragar tudo. Melhor me concentrar na minha coluna, que a gratificação é bem maior. E mesmo que você ache péssimo, não vai poder mexer. No máximo, criticar. Mas aí já não vai ser o meu texto, e sim o seu. Adriana Baggio |
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