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Segunda-feira, 20/11/2006 Ditadura e um urso gostoso Marcelo Miranda Desde 1982 o regime militar é matéria-prima para muitos filmes brasileiros. É o período mais doloroso da nossa história recente, época de torturas, desaparecimentos, conservadorismo, falta de liberdade. Mas é, ironicamente, uma época de conquistas (Copa de 70, crescimento econômico) e avanços no país. Lidar com este pensamento ambíguo, de um tempo ao mesmo tempo próspero e nefasto, ainda é complexo e gera confusões na cabeça de muita gente. O cinema, com seu poder de recriar realidades amplas a partir de olhares particulares, vem tentando, à sua maneira, compreender o período - ou mesmo refletir sobre ele. Pra frente Brasil, de Roberto Farias, foi o primeiro. Lançado ainda com a ditadura em vigor, mostrava o paradoxo entre os porões da tortura e a alegria dos estádios. Já tocava fundo na ferida, mas era apenas o primeiro passo. Vinte e quatro anos depois, filmes e mais filmes foram despejados tendo o militarismo entre 1964 e 1985 como presença nos enredos. Fosse de forma direta (Lamarca, Ação entre amigos, O que é isso, companheiro?, Cabra-cega), fosse tendo o regime como contexto ou ambientação (Dois córregos, Zuzu Angel). Tudo isso para falar de dois filmes atualmente em cartaz nas salas brasileiras e cujo foco está na ditadura, cada um lidando com o tema à sua maneira - e ambos com formas muito particulares e distintas de enxergá-lo. Sonhos e desejos e O ano em que meus pais saíram de férias partem do conflito e da repressão provocados pelos militares para narrarem dramas intimistas. Colocar a dupla de produções lado a lado é sentir o quanto, por um lado, ainda existe imaturidade em relação à abordagem, e por outro é possível criar uma obra de impacto sem ao menos inserir um discurso ou sequer pronunciar a palavra "ditadura". É isso que acontece no filme de Cao Hamburger. O ano em que meus pais saíram de férias não inclui palavrórios contra o regime e nem explicita o momento pelo qual o país passa. Porém, logo nas primeiras cenas, o espectador sente o clima pesado, a movimentação estranha de quem precisa se esconder, a angústia de pessoas que lutavam por liberdade e só encontravam feridas e mortes. O garoto Mauro é o centro da narrativa, e é através dele - mais ainda: através do olhar inocente e ingênuo que ele coloca em tudo ao seu redor - que o público embarca na trama. Hamburger arriscou deixar o filme a cargo desse menino, de seu olhar, de sua percepção ante a realidade onde está colocado. Não é preciso que surjam guerrilheiros em ação ou milicos maldosos dispostos a matar passarinhos (tal cena existe, e está no sofrível Garrincha - Estrela solitária). A cada expressão de dor, de dúvida, de anseios, tanto das crianças quanto dos adultos, sabe-se perfeitamente o que se está enfrentando. Não é nada disso que acontece em Sonhos e desejos. Primeira ficção de Marcelo Santiago, o filme se inspira no livro Balé da utopia, de Álvaro Caldas, para falar sobre um núcleo de guerrilheiros em Belo Horizonte formado por um professor universitário e a estudante com quem ele inicia um romance. Ao cuidar de determinado "companheiro" ferido, que se esconde em sua casa, a moça se envolve num jogo de sedução e cria o velho e bom triângulo amoroso que não pode acabar bem. Para sentir as "boas intenções", já começo contando que o título do filme, que seria mesmo Balé da utopia, foi mudado porque muita gente não sabe o significado da palavra "utopia". Não, não fui eu a afirmar tal coisa. A idéia partiu da produção - a cargo de Lucy Barreto e do filho, Fábio Barreto. A ditadura está lá, como um fardo carregado pelo enredo. Todas as vezes que surgem referências à ação antimilitar, o filme tenta passar rápido e chegar logo no triângulo amoroso, como se a repressão fosse uma obrigação de roteiro, ou mesmo algo a tentar dar mais importância ao drama principal. Quando o amor floresce em cena, inquieta mais o sexo quase explícito (Mel Lisboa transa no chão, na cama e até num sonho) do que qualquer tipo de preocupação com a intimidade verdadeira desses personagens. É tudo descarado demais (e não se fala aqui de nudez, mas de falta de sutileza), como se o tesão valesse mais que a complexidade de sentimentos numa situação como aquela. Talvez quem não saiba o que é "utopia" seja mesmo a turma de Sonhos e desejos. Marcelo Miranda |
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