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Segunda-feira, 27/11/2006 Ad Usum Juventutis Ricardo de Mattos Já foi explicado diversas vezes como Ricardo de Mattos começou a escrever para o Digestivo Cultural, tanto por ele mesmo quanto pelo editor da época, Julio Daio Borges, o Velho. O tiro de largada foi dado pelo jornalista cultural Daniel Piza - posteriormente interno do mosteiro de São Bento com o nome de irmão Teodoro -, houve um acompanhamento inicial do site e enfim o envio de textos até a vinculação definitiva. Os primeiros textos de Ricardo de Mattos fazem os leitores do atual século imaginarem que ele viveu há muito mais tempo, e não há apenas duzentos anos. As fontes consultadas dão a entender que ele levou longe demais seus estudos do idioma, ainda que amadores e sem maiores conseqüências futuras. Ao passar do tempo ele amenizou seu linguajar e chegou a flertar mui discretamente com a linguagem coloquial. Nos primeiros meses, ou mesmo no primeiro ano e meio, ele escrevia mais para si mesmo que para um público, pois segundo consta de um de seus diários conservados na Biblioteca da Universidade de Coimbra: "...não tenho noção, não tenho uma idéia mais ou menos próxima de quem lê o que eu escrevo..." (Codex II, pág. 1.406). Contudo, de uma forma geral, seus textos eram formais, porém simples e "redondos", para utilizarmos uma expressão que lhe foi cara. Gostava de escrever com começo, meio e fim, embora permitindo-se divagar. Percebe-se o cuidado em pesquisar bem antes lançar uma informação. Notamos o apuro em transmitir dados e isto deve-se em parte a sua autocrítica expressa no seguinte fragmento: "estou sujeito ao erro; contudo, esforço-me para errar pouco e involuntariamente" (Codex II, pág. 703). A apreciação de sua formalidade característica deve considerar três aspectos. Primeiro, Ricardo de Mattos foi um homem naturalmente formal, como pode ser verificado nos vídeos de sua posse da presidência da República e das entrevistas coletivas. Segundo, ele foi um homem terrivelmente tímido, incapaz de expansões imediatas. Mesmo no convívio com os familiares e amigos, ele era de início contido, precisando recorrer ao humor cáustico para fazer o que à época dizia-se "quebrar o gelo", isto é, ficar à vontade, ser informal. Terceiro, ele levou a sério sua participação no Digestivo Cultural, empenhando-se para que o veículo fosse respeitado. Não para que o respeito ao Digestivo refletisse nele, mas por lealdade ao editor e aos demais colunistas. Lealdade e fidelidade foram virtudes cultivadas ao extremo, ao ponto de sofrer pessoalmente por elas e adquirir certa hostilidade em relação a algumas pessoas. A carta de uma amiga, também conservada na Biblioteca de Coimbra, repreende-o pelo radicalismo: "... louvável que você tenha sempre em mira a lealdade aos seus amigos e demais pessoas a quem está de alguma forma ligado. Louvável, também, seu hábito de investigar quem possui razão antes de tomar partido. Contudo, vivemos num momento leviano, e exigir no mesmo grau esta virtude de todos que lhe passam pela frente acaba sendo problemático" (Cartas Reunidas, vol. III, pág. 435). Baseados nos diversos tipos de escritos do período em que mais colaborou para o Digestivo - diários, papéis esparsos, cadernos de notas - podemos concluir que: I - Ricardo foi pêgo de surpresa, pois não esperava que um texto escrito aos bocados e sem pretensão rendesse-lhe o convite ao vínculo. Recusou o título de crítico e preferiu o de resenhista. Arriscou contos e crônicas - "Crônica do Quarto de Bagunça" - mas considerava-os meramente experimentais, mesmo que futuramente tenham pesado na sua eleição à Academia Brasileira de Letras. A propósito, vide abaixo um conto inédito encontrado durante o inventário de sua livraria. II - Os anos de colunismo fizeram-no retomar o costume de variar suas leituras, demasiadamente repetitivas segundo ele mesmo. A lista dos livros lidos em 2.006, para fazermos uma escolha aleatória, inclui obras tão diversas como o clássico chinês Tao Te Ching, livros sobre apicultura que ganhou de duas amigas professoras da área, uma seleção de textos sobre Bob Marley e A Fabricação do Rei - A Construção da Imagem Pública de Luis XIV, de Peter Burke, além das obras sobre Direito e Espiritismo, doutrina que abraçou com vigor. Pelo que consta, ele gostou tanto de Sete Anos no Tibet, de Heinrich Harrer, que escreveu abaixo do título, na lista: "não assistirei o filme para não perder a agradável impressão da leitura". III - Do estudo dos problemas culturais do país, ele passou ao estudo dos diversos problemas de sua terra e do mundo. Considerava importante o encadeamento multidisciplinar. Notamos que seu olhar observador partia de sua cidade, passava para o Estado, para o país e então para o mundo. IV - O trabalho de Ricardo para o Digestivo consistia em ler e resenhar livros diversos. Fazia questão de ler as obras integralmente, pois criticava o hábito até hoje corrente e perceptível dos resenhistas de ler apenas as orelhas e o primeiro capítulo dos livros. Depois da leitura, pesquisava sobre o autor, obra e assunto. Primeiros esboços, redações prévias e texto final. "O que aprendi a fazer para apresentar textos razoáveis, direcionei e apliquei em todos os meus demais trabalhos" (Codex IV, pág. 109). Apesar dos esforços, sua passagem revelou-se imperceptível. Quando precisou retomar os cuidados com seu futuro, através dos concursos públicos, até o exame que finalmente fê-lo ingressar na magistratura do Estado de São Paulo, de colunista fixo passou a colaborador, enviando poucas colunas a cada ano. Já se prognosticava naqueles tempos a efemeridade do material publicado pela internet. Destacar-se na mídia eletrônica exigia esforço ininterrupto. Passados mais de duzentos anos da criação do site, o trabalho que hoje apreciamos deve-se à solidez do fundamento lançado pelo já mencionado Julio Borges. Este fundamento consistiu em trabalho árduo e indelegável. Eis porque nas mensagens arquivadas na sede do Digestivo Cultural, encontramos várias em que Ricardo apelida-o "coronel Julião Borges das Sete Onças". Segundo consta, "... é preciso disciplina militar por parte de J.D.B. para manter este tipo de trabalho num país semi-selvagem. Disciplina e força equivalente à necessária para dar cabo de sete onças, diariamente. Passados quinhentos anos da descoberta desta terra, somos todos ainda colonizadores" (Codex II, pág. 945). Poucas colunas de Ricardo tiveram atenção por mais de uma semana. "A Apologia dos Cães" rendeu alguns comentários dos amantes destes animais. "Da Poesia na Música de Vivaldi" foi bem recebida e despertou interesses. Para pasmo e agravamento da implicância do autor, foi sua coluna mais indiferente que rendeu maiores controvérsias, aquela sobre Castaneda. As investigações sobre o atentado sofrido em 2.035, e que quase custou-lhe a vida, não foram conclusivas sobre a participação ou não de admiradores de Castaneda em conluio com o PCC. Na casa do atirador foram encontrados livros deste escritor e um computador, mas não fizeram a devida perícia para saber se ele havia acessado e lido a coluna. Como todos sabemos, o PCC começou na forma de um movimento prisional, transformou-se em partido político e acabou por eleger diversos presidentes, deputados e senadores. A aquisição de imenso poder foi a causa de sua queda, pois as divergências internas e disputas fizeram-no ruir. Não há registros públicos ou particulares do que Ricardo tenha escrito antes do Digestivo, além dos textos técnico-profissionais. Posteriormente sua produção foi lenta, visto as várias atividades com que se ocupou. Mesmo assim, além de colunas de periodicidade irregular, sua obra é composta de dois livros de contos, um romance regionalista mal recebido pela crítica e diversas contribuições para periódicos jurídicos, espíritas e literários. As Mensagens publicadas no início de cada um dos seus quinze anos de governo sofreram, ao menos no princípio, a interferência dos assessores que tentaram suavizar-lho estilo. Sua produção maior permaneceu inédita em forma de diários e folhas avulsas, escritos atribuídos por ele aos seus diversos surtos de hiperatividade do raciocínio: "... quando comecei a escrever para o Digestivo foi assim. Alguns anos depois, novamente. E com regularidade. Parece-me que em determinados momentos eu precisava parar tudo e escrever, escrever para ajustar meus limites e conhecimentos, descobrir o que eu realmente sabia e o que eu pensava saber. Escrever para identificar o que me faltava, o que me bastava e o que excedia. Encadear e arquivar as informações recebidas de todos os lados. Como se fosse vontade de Deus que eu só seguisse depois de organizar o que já havia reunido" (Codex IV, pág. 765). O golpe populista de 2.042 obrigou-o a exilar-se. Partiu para Portugal, onde veio a falecer em 2.053. Antes de embarcar, conseguiu fazer publicar nos principais jornais impressos e eletrônicos - jornais estes que, não muito tempo depois, tiveram suas atividades compulsoriamente encerradas apesar das promessas em contrário dos golpistas - sua Despedida aos Brasileiros. Neste texto, lamentou que os salomônicos investimentos feitos por ele em educação, cultura, ciência e tecnologia não foram suficientes para encaminhar as jovens gerações a novos horizontes. Fez menção expressa ao seu tempo no Digestivo Cultural, lembrando num parágrafo que sua intenção principal era despertar nos leitores o interesse pelos livros comentados, e que esse interesse encaminhasse-os a outras leituras e estudos. Um vídeo mostra-o subindo a rampa de acesso ao navio, levando em uma das mãos as coleiras de seus dois cães e na outra, segundo depoimento de circunstantes, o Livro III dos Ensaios de Montaigne. Bibliografia Sumária: AUGSBERG et al. O Século de Ricardo de Mattos. 14ª ed. São Paulo: Ed. Papirius, 2.210. CANAVEZZI, Germano. O Conceito de Despotismo Esclarecido Reformulado no Governo Ricardo de Mattos (2.027/2.042). 15ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Cosa Nostra, 2.200. GUARNIERI, Giuseppe. Varões Célebres de Taubaté: Monteiro Lobato, Cid Moreira e Ricardo de Mattos. 1ª ed. São Paulo: Ed. Franca, 2.079. GUSMÃO, Ana Maria. Apontamentos Sobre o Atentado de 2.035. 25ª Ed. São Paulo: Editora Jurídica, 2.208. MARCONDES, João B.. Genealogia de Ricardo de Mattos. 3ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2.200. MATTOS, Ricardo de. Despedida aos Brasileiros, edição clandestina publicada em torno de 2.042. Idem: Mensagens Anuais. 16ª Ed. Brasília: Imprensa Oficial do Estado, 2.195. Conto: Os Pássaros dos Gardelinos Na casa do Gardelino Velho já chegou a existir mais de vinte gaiolas, algumas com até dois passarinhos. Nessa época a criação era variada e só faltou o curió porque quem criava era o vizinho Geraldo e ele só se desfazia dos bichinhos por coisa de dois a três mil reais em valores de hoje. Gardelino só tinha e queria passarinho ganho ou pêgo no alçapão. Gardelininho também teve seu interesse e até pedia para o pai um exemplar desta espécie ou daquela. O gosto de Gardelininho por ave presa foi a semente ruim de planta boa, pois o rapaz aprendeu a reconhecer as espécies e guardou bem o canto de cada uma. Percebeu também que o canto da ave presa não é o mesmo da ave solta. Constatação óbvia: compare-se o cantarolar tartamudeado do profissional em seu gabinete, do preso na cela e do enfermo na ala de recuperação com o cantar desafiante do boêmio ébrio de cerveja e liberdade, acompanhado d'algum instrumento e flertando com alguma mulher. O Gardelino velho, além de meio surdo, não punha reparo na minúcia estética, mas o novo gostava de parar no pomar, no pasto e até na praça do distrito para apreciar a cantoria. Tanto que nem deu confiança à redução dos pássaros presos, redução provocada pela morte e eventual fuga. Passada a época de abundância de cores e de cantos, seguiu-se um período com quatro ou cinco gaiolas no rancho. Uma namorada de Gardelino insistia com pai e filho para que soltassem os remanescentes, mas precisou conformar-se com a explicação recebida. Passarinho velho, assegurou o Novo, não dura se sair da gaiola, pois passou a vida preso e não sabe comer nem beber sozinho, além de ser isca fácil de gavião e de coruja. É o mesmo que pegar o pobre e torcer o pescoço dele, concluiu o namorado da namorada. E com poucos continuou o Gardelino Velho, até cismar de arrumar outros. Um dia apareceu com um pintassilgo. Meses depois, quase ano, um par de canários da terra e, mais seguido, outro pintassilgo que, de tão novo, nem tinha a cabeça preta. O filho não se entusiasmou, mas ajudou no trato. A folhinha de cavalo galopando, ganha na casa de ração, foi substituída por outra de flor, e esta já estava bem riscada quando o Velho anunciou, satisfeito, a chegada dum terceiro canário da terra, dado como parte de obrigação contraída perante ele em mesa de truco. Tanto falou, que o filho foi até o quartinho onde à noite recolhiam-se os pássaros a fim de protegê-los de malasartes de bicho e de saci. Ao abrir a porta e olhar a gaiola, Gardelininho sentiu um aperto tão ruim que a primeira e única idéia foi de soltar o recém-vindo. Se isso foi numa quarta-feira, no sábado o plano estava pronto e executado. Quando o pai, a mãe, a avó e as duas irmãs sentaram-se para almoçar, o filho enrolou para ajeitar seu prato, fez que foi à casinha, mas sentando-se à mesa com a comida, o canário novo partia para longe e sem deixar notícia do trajeto. De tarde, antes de sair para a missa, o pai deu pela ausência do pássaro e armou o alçapão, jurando tê-lo visto em árvore do quintal. Não só o liberto não voltou para saber si sentiram sua falta, como a visão do velho falseou-lho entendimento, fazendo-o confundir o fugitivo com uma pardaloca. Quem pensa no canário da terra, imagina-o verde com a cabeça de alaranjado forte, imitado do Curupira. Só que quando novo, ele é rajado e pálido, parecido com o pardal fêmea que engrupiu o velho. E foi justamente esta novice, este rajado da primeira pena que gerou no filho a angústia decorrente em ímpeto libertador. Gardelininho calculou o tempo que levaria para o canário esverdear e pensou que até isso acontecer o cativeiro embotar-lhe-ia os instintos. Isso se não fosse fêmea, pois passarinho criança é igual nos dois sexos. Além de cativa, seria alvo da implicância do pai: Mulher é bicho tão tinhoso que nem a de passarinho serve: só come, não canta bonito e a maior parte é feia. Desde então, assim que o velho aparece com passarinho novo, o filho fica esperto. Uma gaiola velha foi utilíssima, facilitando muita fuga. Como o velho não arranjava outra, para todos os efeitos as aves escapavam através das grades tortas. Mesmo os vícios podem ser úteis si encaminhados com prudência. Nos olhos duma patativa, era visível a ânsia por sair. Patativa já canta triste; aquela faria escorrer lágrima exigindo solidariedade no sofrer. Com os passarinhos que ficaram, Gardelino Filho não se importou muito. Lembra do pintassilgo de cabeça pretejando? Está tão confortável em seu posto por entre as grades que avança nos mais recentes e procura assunto com os pardais pedintes quando pousam na sua casa atrás de seu alpiste. Basta aproximar as gaiolas e ele abre nervoso o bico, como a dizer: Estou aqui há mais tempo, já sabe quem manda! Os demais parecem resignados e cantam como a prosear sobre memórias que não construíram. Alguns precisam ser imediatamente libertados, pois conheceram a vida livre e não resistem na estreiteza do viveiro. Outros acham que o mundo é aquele palmo de espaço que têm diante dos olhos - passarinho mede com palmo? -, adaptam-se e vivem muito bem. Outros, por fim, conformam-se e aguardam o Supremo Soltador abrir-lhas portinholas. Ricardo de Mattos |
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