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Segunda-feira, 4/12/2006 Festival de Brasília: cinema de controvérsia Marcelo Miranda O 39º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro terminou no último dia 28 de novembro. Entre os seis longas-metragens concorrentes ao Troféu Candango, sobressaiu-se a controvérsia. É tradição do festival ser marcadamente politizado, daí sua enorme importância no audiovisual brasileiro. Não apenas na política presente nos filmes (estética e tematicamente), mas também nos fóruns, debates e discussões que tomam conta da capital federal nos sete dias de evento. Mas claro, a grande atração são os filmes, todos obrigatoriamente inéditos. É a primeira vitrine de alguns dos trabalhos potencialmente destacáveis do ano seguinte no cinema brasileiro. Este ano, em particular, a seleção de longas dividiu-se entre os que buscavam resgatar história e cultura e os que desafiavam o olhar condescendente com a realidade para acertar de jeito o espectador. Entre erros e acertos, foram escolhas de respeito. Este colunista esteve no festival e conferiu cada um dos filmes. Para saber detalhes do dia-a-dia e os premiados, clique aqui. Brasília este ano se destacou pela coerência na proposta temática dos filmes - ainda que o lado estético tenha variado bastante. Começou com o olhar meio deslumbrado de Evaldo Mocarzel sobre os encantos de uma periferia paulista esperançosa, no documentário Jardim Ângela. O filme fascina por ter sido realizado ao longo do seu processo de concepção, para apenas depois se tornar um trabalho a ser exibido em cinema. Não que Mocarzel não intecionasse algo com o material - afinal, havia sempre um mínimo de duas câmeras registrando a oficina dos jovens. O diretor teve a sensibilidade de montar as imagens e dar vida a um filme.
Querô se localiza num universo semelhante, porém pintado com cores de sofrimento e dor. Primeira ficção do paulista Carlos Cortez, é inspirado em Plínio Marcos e narra a trajetória de um jovem órfão na periferia (de novo ela) da cidade de Santos. Criado por uma prostituta, sem rumo certo na vida, Querô, espécie de bisneto simbólico do Pixote de Hector Babenco, cai nas ruas. Vai para a Febem, é violentado, foge, volta às ruas. Um ciclo sem fim, retratado por Cortez com estética de grande força dramática sem apelar para o explícito ou chocante. Exagera nos flashbacks na parte final e ameaça tornar seu personagem mais uma vítima da suposta sociedade sórdida onde vive. Mas a cena final tem o olhar do estreante Maxwel Nascimento (esplêndido, merecidamente ganhador do Candango no festival) para a imagem da mãe, vivida por Maria Luísa Mendonça. Esse olhar eleva o filme a uma poesia como nunca tivera até então e o salva de muitos dos tropeços quase iniciados minutos antes.
A violência no Brasil voltou à baila em Batismo de Sangue, do mineiro Helvécio Ratton. Baseado no livro de Frei Betto sobre a participação dos frades dominicanos na luta contra o regime militar brasileiro, Ratton levou à frente projeto com clara proposta de fazer o espectador sentir o real impacto da utilização da tortura na coleta de informações. Porém, num projeto desses, é necessário que o público "entre" no filme e sinta com os personagens as dores infligidas a eles. Não é o que acontece. O diretor concatena suas imagens de forma a sempre afastar o espectador - seja inserindo flashes de um personagem misterioso que apenas na metade do filme se revela ser o delegado Sérgio Fleury, líder dos torturadores; seja deixando o elenco interpretar com certo automatismo, naquele esquema de um ator esperar a fala do outro acabar para entrar com a sua. Nomes relevantes, como Caio Blat e Daniel de Oliveira, não parecem dar tudo de si quando entram em cena.
Em seguida, outra vez a violência foi tema, mas em estética bastante distinta à de Batismo de Sangue. O pernambucano Cláudio Assis amadureceu depois de Amarelo Manga e entregou chocante exercício de perversão em Baixio das Bestas. O filme não oferece concessões. Usa a câmera como observadora dos atos mais detestáveis, sem jamais permitir que os artifícios de rigor técnico (planos-seqüência, colocação da câmera e da luz) suplantem o que está impresso na imagem. E que imagens. Mesclados aos canaviais da zona da mata do Recife, estão personagens amorais cujos maiores divertimentos são azarar e violentar mulheres e explorar garotinhas. É um filme mais descrente e desiludido com a realidade que Amarelo Manga, porque não apresenta possibilidades de mudança - como antes acontecia, no filme anterior, com a evangélica vivida por Dira Paes. Agora, Assis aponta o olhar para uma realidade que, segundo ele próprio, é sufocante como está na tela. Não há escapatória, e resta apenas acompanhar o niilismo de gente que se diverte daquelas maneiras perversas.
Por fim, Encontro com Milton Santos ou o mundo global visto do lado de cá aponta seu discurso para as mazelas da globalização, em outro trabalho de teor crítico a aparecer no festival. Só que o documentário de Silvio Tendler (já ganhador de Brasília no júri popular com Glauber, o filme - Labirinto do Brasil) nasce velho. É filme de idéias pré-concebidas que utilizam os pensamentos de um grande intelectual que foi Milton Santos para corroborar teses próximas do ingênuo - ou não seria ingenuidade aquela animação narrada por Matheus Nachtergaele sobre um homem que salva a garotinha de um cachorro selvagem? Há depoimentos de força impressionante, como o do escritor português José Saramago (que questiona o fato dos organismos regentes da economia mundial, como FMI e Banco Mundial, não serem instâncias democráticas porque não têm representação popular nem permitem a escolha externa de seus líderes). Os aplausos de pé no final da sessão no festival mostram ao menos uma coisa: quando o público se enxerga na tela, ouve suas próprias idéias e vê retratados na boca de gente com alto nível intelectual pensamentos aparentemente banais, a recepção é das melhores. Apesar de meio esquisito e por vias tortas, Encontro com Milton Santos pode levantar algumas boas questões - ainda que poucas de cunho essencialmente cinematográfico.
Da-Rin reuniu todos os ainda vivos que participaram da ação de seqüestro - entre eles, o jornalista Franklin Martins. Colocou-os numa mesinha regada a água tônica e salgadinhos e deixou-os falar, acertar as contas, relembrar detalhes da época, o planejamento, a realização, as conseqüências. Do outro lado, o diretor procurou um a um dos libertados (um deles é o ex-ministro José Dirceu) para darem declarações isoladas sobre a soltura. Assim, Da-Rin cria uma encenação de total coerência: se a ação contra a ditadura foi coletiva, lá estão todos juntos a falar do ocorrido; e da mesma forma solitária como estava cada um dos então presos (um dos entrevistados diz que nenhum deles parecia se conhecer quando foram todos enfiados num avião rumo à liberdade), o cineasta deixa-os se abrirem à câmera sem interferências. É uma forma respeitosa que o documentarista encontrou para reconstituir, por palavras, o que aconteceu naqueles dias nebulosos. De imensa riqueza histórica e humana, Hercules 56 levantou a platéia em Brasília e merecia ter sido melhor encaixado na programação. Na verdade, deveria era estar competindo. Muito político e questionador (o espectador se arrepia quando os ex-guerrilheiros confessam que estavam dispostos a executar o embaixador, sem pestanejar, caso as exigências não fossem cumpridas), o filme resgata e reafirma, sem abandonar a construção cinematográfica que o habilita, afinal, como um filme, o impacto de uma das maiores ousadias cometidas na luta contra o regime militar. Coisas de Brasília, no entanto. O clichê da controvérsia vai sempre perseguir o festival - na seleção, na exibição, na premiação, nas injustiças, nos reconhecimentos. É parte do processo. Importante é que o festival continua a ser suscitador de discussões e pensamentos acerca do cinema brasileiro. Já é justificável, enquanto isso acontecer à base de filmes de salutar ousadia e preocupação com suas próprias estéticas de existência. Marcelo Miranda |
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