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Terça-feira, 12/12/2006
Traição em cem atos
Luiz Rebinski Junior

Nova edição de A vida como ela é... traz os contos de Nelson Rodrigues que deram origem a filmes, peças de teatro e séries de TV

Mil novecentos e cinqüenta foi um ano ruim para Nelson Rodrigues. Após deixar o emprego que tinha nos Diários Associados, o escritor fica à deriva no jornalismo nacional, tendo como ganha-pão apenas trabalhos esporádicos no Jornal dos Sports, periódico do irmão Mário Filho.

Nessa época Nelson já tinha escrito alguns dos textos mais emblemáticos de sua carreira, tal como Vestido de Noiva (1943) e Dorotéia (1949). Além disso, alcançara um enorme sucesso com as histórias assinadas por Suzana Flag, seu primeiro pseudônimo feminino, em um dos jornais da família Chateaubriand. Mesmo assim o jornalista enfrentava, como ao longo de toda a sua vida, altos e baixos que colocavam o sustento de sua família em perigo.

Mas a sorte de Nelson começa a mudar quando Samuel Wainer lhe oferece espaço no getulista Última Hora. Nasce aí A vida como ela é..., uma coluna em que o dramaturgo escrevia pequenas histórias de ficção. A coluna, que durou dez anos no jornal de Wainer (1951-1961), foi editada em 1961 e virou peça de colecionador. Agora, depois de 45 anos da primeira edição compacta, com 100 contos - em 1992 a Companhia das Letras editou em dois volumes [1 e 2] as histórias de Nelson, escolhidas por Ruy Castro -, a editora Agir coloca na praça novamente o tomo em uma edição de luxo. Esse, segundo a Agir, é o primeiro da série de livros que vai resgatar a obra em prosa do maior nome do teatro brasileiro.

Bem como as colunas assinadas na pele de Suzana Flag e Myrna, A vida como ela é... rapidamente se tornou um grande sucesso. Diz a lenda que Wainer sugeriu o nome de "Atire a primeira pedra" para o espaço e que os textos de ficção fossem baseados em algum fato real veiculado no jornal do dia. Porém Nelson aos poucos foi esquecendo do trato com o patrão e em pouco tempo já bolava histórias que não tinham nada a ver com as notícias factuais do Última Hora.

Os Contos
Entre o trágico e o cômico, os contos de A vida como ela é... (Agir, 2006, 512 págs.) trazem à tona toda a carga de pequenos e grandes dramas e tragédias que assolavam a vida do carioca médio na primeira metade do século 20. Cronista mordaz e sarcástico, Nelson destila seu veneno em histórias curtas que sempre revelam um lado - moralmente, é claro - desconhecido de gente recatada e fidedigna da sociedade do Rio de Janeiro.

Obcecado por tragédias familiares - certamente não por acaso, já que a história de sua própria família é carregada de dramas -, a cada conto Nelson revela as faces mais obscuras do ser humano. No final das contas, entre parricídios, assassinatos, incestos e suicídios, tudo gira em torno de um tema central: a traição. De uma forma ou de outra, há sempre alguém traindo ou sendo traído nas histórias pouco convencionais do dramaturgo. Tudo praticamente acontece em torno do núcleo familiar, uma instituição tão temida e respeitada quanto a igreja nos idos dos anos 1950.

Em A vida como ela é... há espaço para todos os tipos. Do funcionário público infiel, passando pela moça recatada que no final se revela depravada, até culminar no pai de família honrado e distinto que mantém relações pouco ortodoxas com a própria filha. A galeria de personagens de Nelson Rodrigues é infinita e sempre surpreendente. Às "granfinas" da alta sociedade, juntam-se uma horda de pequenos trambiqueiros e malandros que ajudam a moldar uma cidade singular.

Tendo que escrever em um espaço limitado, Nelson criava histórias curtas, sempre com começo meio e fim, mas que mantinham o ritmo e a "pegada" do velho safado. O final surpreendente, próprio do conto enquanto gênero literário, é um elemento constante na literatura do escritor. Afinal, é justamente essa característica que valeu a Nelson Rodrigues a fama de devasso, reacionário e outros adjetivos pouco lisonjeiros. Mas o fato é que sua escrita é genial não apenas porque choca pura e simplesmente o leitor/espectador, mas porque consegue tal resultado falando de coisas absolutamente simples, capazes de desestabilizar, nas mesmas proporções, gente das mais variadas espécies. Ao contar histórias sobre adultério, Nelson fala de uma situação que atormentava o homem de 50 anos atrás e que continua a infernizar a vida do cidadão urbano dos grandes centros hoje em qualquer parte do planeta. Ou seja, os temas universais com que trabalhava, aliados à sua inconfundível forma de narrar, davam ao que ele escrevia uma força imensa, capaz de pegar pelo pé qualquer leitor, seja ele iniciado ou não nas questões rodriguianas.

Além disso, os contos de A vida como ela é... são muito visuais, quase cinematográficos. Não é à toa que muitas das histórias da coletânea foram adaptadas para o cinema e a televisão, como é o caso de A dama do lotação, filmada por Neville de Almeida.

Criador de uma prosa singular e inconfundível - objetivo de dez entre dez autores que têm algum tipo de pretensão literária -, Nelson parece ter conseguido congelar o tempo por meio de sua escrita. Cada conto é um pedaço da história de um Rio de Janeiro suburbano e provinciano que já não existe mais, mas que insiste em sobreviver apenas nas linhas do dramaturgo. É impossível ler os contos de A vida como ela é... e ao final não ter a certeza de que os costumes, vícios e tradições dos anos 1950 eram exatamente aqueles "inventados" por Nelson. Os nomes sisudos (Aaraão, Odésio), as gírias ("granfa", "essa cara", "batata") e as rotinas hoje pouco usuais parecem perfeitos aos dramas contados em ritmo acelerado.

É fato que para os mais desavisados os cem contos da nova edição de A vida como ela é... podem parecer cansativos, haja vista a obsessão do autor em escrever sobre os desejos mais reles, porém inevitáveis, do ser humano. No entanto, é bom que se diga que Nelson Rodrigues não seria o grande escritor que é se escrevesse, agisse e pensasse de outra forma. Nelson faz parte de um seleto grupo de escritores que já nasceram com voz própria e que, por conta disso, puderam se dar ao luxo de trilhar sempre o mesmo caminho. E o caminho de Nelson é a traição, o adultério, a falsidade, o desejo reprimido e a falsa moral de uma sociedade hipócrita. Foi assim em tudo que escreveu, do teatro à prosa. Nelson criou um estilo de narrativa sem igual que se confunde com sua própria imagem e vice-versa.

Mais do que boas histórias bem escritas, os contos em questão ajudam a entender por que Nelson Rodrigues, além de grande escritor e figura inigualável, é considerado um desbravador da mente humana, capaz de trazer à tona os sentimentos e anseios mais obscuros - e comuns - do homem, seja ele rico ou pobre, feio ou bonito, ético ou não. As histórias de A vida como ela é..., cada uma delas, são como pequenos clássicos que ajudam a deixar isso mais claro.

Para ir além





Luiz Rebinski Junior
Curitiba, 12/12/2006

 

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