busca | avançada
52329 visitas/dia
1,9 milhão/mês
Quinta-feira, 14/12/2006
As sementes de Flowerville, de Sérgio Rodrigues
Paulo Polzonoff Jr

Fiz uma entrevista há muito tempo com Olavo de Carvalho, na qual ele dizia que "o otimismo é a ideologia dos assassinos". Nunca me esqueci da frase de efeito. Acho até que ele deve ter razão, num sentido político, que aqui não cabe. O otimismo pequeno e individual é que me interessa. Aquele que faz meus olhos brilharem não porque o Paraíso se aproxima, mas porque reconheço que felicidade é algo possível - sempre num contexto individual, minúsculo, restritíssimo. Este otimismo, defitivamente, não faz assassinos.

Passei os últimos três ou quatro anos da minha vida mergulhado num pessimismo macabro. Curiosamente, foi o reconhecimento da derrota que me libertou do sofrimento. Reconhecer-se derrotado no campo das idéias foi libertador. Já usei mais de uma vez a imagem militar, mas não me ocorre outra: recolhi as armas, retirei os exércitos, contei os feridos, enterrei os mortos - e voltei à vida. Anotem: lição de Montaigne.

O exemplo que interessa aqui: eu costumava pensar que a literatura brasileira estava fadada ao mais retumbante e assustador fracasso. Não temos autores que prestem, eu dizia, para quem quisesse ouvir. Nossos melhores escritores estão na casa dos oitenta anos - e não há quem os possa substituir, eu decretava, num tom sempre interpretado como raiva, mas, caramba, era só tristeza mesmo.

E, percebo agora, um tanto de cegueira.

Abri um longo e redentor sorriso ao terminar de ler As sementes de Flowerville (Objetiva, 2006, 136 págs.), de Sérgio Rodrigues. O livro me fez perceber que, apesar do ninho de cobras que é o mercado editorial brasileiro, apesar da falta de profissionalismo, apesar das desonestidades, apesar de necessidade de auto-afirmação, apesar de tudo (e de mim), a literatura brasileira continua a nos dar momentos únicos de realização. Garimpá-los pode ser penoso e desestimulante. Mas também pode ser recompensador.

As sementes de Flowerville é apenas um dos bons livros nacionais que li em 2006. Ana Maria Gonçalves nos brindou com um épico como há muito tempo não se via na nossa literatura, Um defeito de cor. Daniel Galera nos fez acreditar que há talento numa geração marcada pela transgressão estéril, com seu Mãos de cavalo. Antônio Fernando Borges concluiu sua trilogia metalingüística com Memorial de Buenos Aires. Fernando Molica encontrou amor em meio à violência em Bandeira Negra, Amor.

E deve haver outros, que não li por preguiça ou preconceito.

O grande problema, em relação a todos estes livros, continua a ser o despreparo do leitor médio. É o caso de Memorial de Buenos Aires, de Antônio Fernando Borges, lido apenas como um exercício de referências a Machado de Assis e Jorge Luis Borges. Não li um só comentário a respeito do livro que se aprofundasse nas relações do tempo, de que o livro tanto trata. O mesmo acontecerá, acredito, com As sementes de Flowerville. A simplicidade enganadora, entre a maioria dos leitores brasileiros, sempre sai ganhando.

Perdão. Não se trata de um insulto. É apenas um jeito trôpego de ressaltar a maior das qualidades de As sementes de Flowerville, isto é, a tal da simplicidade enganadora. Tudo ali é feito para enganar - e engana. A começar por quem se arrisca a localizar o livro no tempo. Todo mundo está dizendo que é futuro. Mas há algo de passado e mais um tanto de presente. O que é? Ou melhor, quando é? A estas perguntas eu retruco com outra, mais enfática: importa?

Também não é o caso de recorrer ao expediente acadêmico e dizer que As sementes de Flowerville é um romance atemporal. Não: o tempo existe. Só que a ambigüidade (antrigüidade?) proposital deve ser entendida como ela é: ambígua. Reduzi-lo a passado ou presente ou futuro é fazer com que a confusão se perca. E, com ela, uma das belezas do livro.

Não quero, com isso, dizer que o livro é confuso. A confusão, aliás, tem sido a marca de uma literatura que não me agrada. Livros que não vão e nem ficam, que não dizem nem se calam. Deles continuo mantendo distância. As sementes de Flowerville não é um livro confuso. Apenas não é reto e, em não sendo reto, não é torto. Confuso?

Eu realmente me impressiono com a capacidade que as pessoas têm de fazer sinopses de livros como As sementes de Flowerville. Não consigo. Qualquer coisa que eu escrevesse seria reduzir demais o romance. Fica aqui o pedido: compre, leia e depois tente dizer para si mesmo sobre o que é o livro. Se conseguir, se pergunte se não está esquecendo de alguma coisa. Estava, viu?

Claro que o fio condutor da história é Victorino Peçanha. E é claro que existe um mistério a ser resolvido nas páginas finais. Mas como me ater apenas à obviedade e deixar de falar sobre os personagens secundários, cujos nomes, veja só, sequer recordo? As histórias destes personagens secundários vão ficando pelo caminho. Mas que caminho? Ah, sim, como caminhos de biscoito que, na floresta da minha história de fada, levam a lugar nenhum.

Eu gosto desta sensação cada vez mais rara na literatura moderna: a de se sentir completamente fascinado por um detalhe da história que parece não interessar a mais ninguém, nem ao autor. E que, nem por isso, perde a força.

Para mim, o grande personagem de As sementes de Flowerville é Neumani, o matemático contratado, logo nas primeiras páginas do livro, para desenvolver um algoritmo que possibilitasse uma espécie de democracia na qual o meu voto teria mais valor do que o de um analfabeto, por exemplo. Neumani é um perdedor clássico, mas sem a violência dos romances juvenis. Eu percebo nele uma honra triste, daqueles que nadaram e perderam a medalha de ouro por um centésimo de segundo.

Mas cada um há de encontrar o que há de mais fascinante em As sementes de Flowerville: a estrutura de falsas pistas, a prosa cheia de efeitos metalingüísticos, a violência, a ambigüidade temporal, o sexo - e, por fim, o fim. Sim, porque, ao contrário dos livros que eu costumava, nos meus tempos de pessimismo, entender como representativos da literatura brasileira contemporânea, As sementes de Flowerville tem um fim que você, leitor, vai querer alcançar com ansiedade.

As sementes de Flowerville é a primeira aventura de Sérgio Rodrigues pelo romance, seis anos depois de publicar a coletânea de contos O homem que matou o escritor. Corre à boca pequena, porém, o boato de que o autor vai desistir da ficção. Sinceramente, não estou preocupado. Eu não me importo se o escritor demorar mais seis anos para publicar um livro, depois de muitas ponderações. Valem a pena tanto a angústia do autor (no final das contas, sempre produtiva) quanto a ansiedade do leitor.

Ah, sim. Só para não dizer que não falei das flores, há outros bons nomes a serem descobertos pelo leitor brasileiro. Dos mais novos cito Alexandre Soares Silva, que infelizmente só encontrou espaço em editoras pequenas e despreparadas. De uma geração intermediária, vale a pena lembrar o nome de Ruy Tapioca, que deve lançar um novo romance ano que vem.

Para ir além





Paulo Polzonoff Jr
Nova York, 14/12/2006

 

busca | avançada
52329 visitas/dia
1,9 milhão/mês