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Terça-feira, 27/2/2007
Panorama Literário de 2006
Marília Almeida

2006 para a literatura foi sinônimo de eventos consolidados sem muitas novidades, como Flip e Bienal do Livro. Também foi um ano de diversos lançamentos de autores latino-americanos, incluindo a compilação completa da obra jornalística de Gabriel García Márquez em diversos e extensos volumes pela Editora Record; e reedições de obras do jornalismo literário, como Na pior em Paris e Londres, de George Orwell, pela Companhia das Letras, editora já consagrada que reforçou investimentos em um novo formato e coloca no mercado livreiro títulos selecionados a dedo em edições econômicas, com o selo Companhia de Bolso.

Muitos destes novos livros de 2006 ganharam duplo destaque ou foram impulsionados pelo cinema, que parece ter sido e continuará sendo o melhor divulgador da literatura. Em 2006, a sétima arte resgatou até escritores norte-americanos da época da Depressão de 30, como Charles Bukowski (Factotum, com Matt Dillon) e John Fante (Pergunte ao Pó, com Collin Farrel e Salma Hayek). Muitos outros lançamentos são aguardados para este ano, como a adaptação de Anotações sobre um Escândalo, da escritora inglesa Zoë Heller, que traz Cate Blanchett como protagonista.

Por fim, pode se afirmar que 2006 manteve sua agenda agitada na área. Mas quatro escritores e respectivas obras parecem ter se sobressaído e destacado neste concorrido cenário. Alguns já consagrados, outros, novatos que prometem.

Obra premiada
A linguagem do escritor amazonense Milton Hatoum, como já disse no post "As gangorras de Hatoum", é simples, isenta de piruetas modernas ou arroubos intelectuais. Mas sua narrativa é tão intricada que facilmente nos prende com histórias sobre relações familiares complexas e repletas de sentimentos intensos, muitas vezes dúbios e contraditórios. Assim o é Dois irmãos (2001), relançado em formato de bolso no ano passado pela Companhia das Letras e ganhador do Prêmio Jabuti em 2001.

Mas Hatoum, admirador de Guimarães Rosa e Graciliano Ramos, parece ter se consagrado definitivamente em 2006, após ganhar seu terceiro Jabuti por Cinzas do Norte (2005), seu terceiro livro. O primeiro, Relato de um certo Oriente (1989), é separado por anos do segundo, mas premiado da mesma maneira, fenômeno que denota um certo perfeccionismo de seu autor, que definitivamente funcionou muito bem até agora.

O escritor já se destacaria apenas pela sua cidade de origem, na qual faz questão de contextualizar suas histórias, todas com fortes reminiscências autobiográficas: a cidade de Manaus. Pedaço de um Brasil esquecido, Hatoum torna um deleite o desbravar de uma região que traduz tão bem nossa pátria. E cria uma literatura que há tempos não se via no país, com mais recheio e menos forma.

Jornalismo romanceado
Neste ano, não é demais dizer que o jornalista e escritor norte-americano Truman Capote (1924-1984) reviveu. Tudo começou com um filme e indicações ao Oscar, seguidos por diversas reedições de uma obra marcante e polêmica, que revolucionou a linguagem jornalística e foi inspiração para outros escritores de um gênero que se denominou jornalismo literário ou novo jornalismo (new journalism), no qual muitos de seus autores escreviam para a antológica revista norte-americana The New Yorker.

O filme Capote retrata o período de apuração de A sangue frio (Cold Blood, 1966), obra-prima do autor. A atuação afetada de Philip Seymor Hoffman mereceu o Oscar por sua verossimilhança com o retratado. Truman é exatamente o que nos é colocado na tela, talvez pincelado com cores mais claras. A discussão da ética jornalística não tem lugar em sua obra, que insiste em ultrapassar limites até o ápice, em seu último livro, mas, ainda assim, fazer um jornalismo memorável e admirável, exaustivamente apurado e observador.

Após freqüentar a alta roda da sociedade, a decadência de Capote foi rápida e mortal, causada pela dependência do álcool e drogas. Morreu prematuramente após produzir Bonequinha de luxo (1958), sucesso cinematográfico com Audrey Hepburn, e Música para camaleões (1980), peça essencial para entender sua morte e desilusão com o sucesso. Ambos os livros foram reeditados pela Companhia das Letras. O autor ganhou ainda, pela editora, uma compilação de vinte contos de sua autoria, além de uma biografia pela Editora Globo. Além disso, A editora Alfaguara lança agora seu romance inédito: Travessia de verão.

Autor múltiplo
Quem viu Lourenço Mutarelli ao vivo em sua palestra na Flip 2006 e no filme Cheiro do ralo (2006), adaptação de sua primeira obra em prosa lançada em 2002 dirigida por Heitor Dhalia (Nina, 2004) e protagonizada por Selton Mello, não vê grandes mudanças. O escritor é quase um personagem e o personagem é quase o escritor. Com uma expressão facial desiludida, Lourenço gosta de reiterar que por vezes se sente envolvido pelas crises de pânico e depressão tal qual o protagonista de sua aclamada obra, um negociante de artigos usados incomodado cada vez mais com o cheiro do ralo de seu banheiro, o que tira sua razão em situações inusitadas.

Lourenço não é, na verdade, um novato. Ele já era conhecido no mundo dos quadrinhos por seus traços expressivos de nanquim. Lançou a primeira edição de sua arte em 1988 e se tornou referência em publicações independentes. São dele as ilustrações de Nina, que acabou gerando o livro Jesus Kid (2004), uma amostra de que a parceria com Dhalia e Selton rende frutos até hoje. Seu detetive, Diomedes, é estrela de uma trilogia começada em O dobro de cinco, passando por O rei do ponto até terminar em A soma de tudo.

Para completar seu sucesso em 2006, o filme Cheiro do ralo rendeu boas críticas e foi escolhido como melhor filme e ainda levou o Prêmio da Crítica na categoria nacional da 30ª Mostra de Cinema Internacional de São Paulo, além do prêmio do Júri Oficial e Popular do Festival do Rio. Seu mais novo livro, A caixa de areia (ou Eu era dois em meu quintal), lançado pela Devir Editora em janeiro, é uma autobiografia que mistura literatura e quadrinhos.

Peruano engajado
O jornalista e escritor Mario Vargas Llosa, do alto de seus 70 anos, foi uma agradável surpresa em 2006. Seu retorno cruzou o Atlântico pelas mãos da Alfaguara, editora espanhola criada nos anos 60 e que no ano passado desembarcou no país, já responsável por títulos como Quando fui outro, de Fernando Pessoa; Um retrato do artista quando jovem, de James Joyce, entre outros.

Autor distante da fantasia e existencialismo de autores latinos de sua época, como o próprio Márquez, em Travessuras da menina má ainda é possível encontrarmos resquícios da sua postura engajada e narrativa épica, veementes em obras-primas como Conversa na catedral (1969), belo retrato de um Peru sob o jugo da ditadura. Mas Travessuras é, acima de tudo, um livro sobre o amor em meio a utopias, como o Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), ao longo de 40 anos. São encontros e desencontros de um casal por diversas cidades e países, como a revolucionária Paris dos anos 60.

Linha direta com o Oriente
Além destes autores, é impossível não citar a avalanche de títulos provenientes do Oriente Médio ou cuja temática se situa no ambiente da guerra, radicalismo e conflitos religiosos, tão cada vez mais complexa para o entendimento ocidental.

Primeiro, há dois best-sellers: o O livreiro de Cabul, relato da jornalista norueguesa Asne Seierstad sobre os três meses que viveu com uma família afegã, lançado pela Record; e O caçador de pipas, de Khaled Hosseini, traduzido pela editora Nova Fronteira, que terá em breve uma adaptação para o cinema facilmente encantadora, assim como Machuca (2004), já que trata da amizade de crianças em meio a grandes acontecimentos políticos, mais especificamente um Afeganistão invadido pela União Soviética no final dos anos 70.

Outro título extremamente delicado recentemente lançado pela Geração Editorial é Mulheres de Cabul, de Harriet Logan, ilustrado com belas fotos em preto e branco das mulheres afegãs, alvos fáceis de preconceitos e ideologias ocidentais. A imagem, longe de neutralizá-los, pelo menos os minimiza.

Marília Almeida
São Paulo, 27/2/2007

 

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