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Sexta-feira, 4/5/2007 Contato com o freguês Ana Elisa Ribeiro No tempo em que meu pai teve um bar e mercearia, o que hoje se chama "cliente" era conhecido como "freguês". Nem toda a razão estava com ele e ainda existia um caderninho onde se anotavam as compras do mês e se cobrava tudo depois. Era o "põe na conta", a caderneta em que se depositava a confiança no comprador, numa época em que ele pagava. Meu pai foi "microempresário" por pouco tempo. Minha avó pegava queijo e leite sem pagar e acabou quebrando a empresa. Como nem meu pai, nem meu avô e nem meus tios sabiam cobrar, ficaram sem graça e se tornaram um balcão de caridade. Meu pai, logo, logo, trocou a mercearia por um Chevrolet 51 (que já mencionei aqui). Depois dessa incursão pelo mundo dos negócios, meu progenitor virou médico e continuou recebendo, pelas consultas de clínico, galinhas e cachaça dos fregueses que não podiam pagar. Freguês no século XXI Numa das festas de final de ano, arranjei um canto confortável e travei uma conversa com JH, um amigo do meu marido que conheceu Belo Horizonte, quando esteve na capital mineira, por três vezes, a trabalho. Dizia JH que tinha de Minas ótima impressão. Fiquei intrigada com a afirmação peremptória, sem traço de controvérsia, e achei que era gentileza. Mais adiante alguns milésimos de segundo, resolvi perguntar: por quê? Não que eu ache os mineiros ríspidos, mas fiquei curiosa com a eventualidade de alguém falar com tão bons olhos da minha capital. Disse JH que esteve na cidade para reuniões de negócios. Uns amigos dele o chamaram para jantar e foram se encontrar num cinema. JH não se lembrava mais do nome do cine, mas pela descrição, tive certeza de que era o Belas Artes, uma espécie de galeria em que é possível comer e beber bem, pagar caro por uma trufa gostosa, comprar balangandãs de bom gosto, observar exposição de artistas contemporâneos e visitar uma livraria de bons livros. Foi nessa livraria que JH viveu o inesperado. Escolheu, entre várias possibilidades interessantes, 5 livros caros e bons. Não me disse quais e nem me interessei em saber. Pelo local, já deduzia que seriam livros de cultura. Quando foi ao balcão pagar os achados, o atendente (que desconfio ser o primo do dono) disse que: perdão, mas não temos aqui máquina de cartão, nem de débito automático e nem de crédito. Lastimaram ambos o problema. JH, com o cartão magnético na mão, pensou em brandi-lo e chamar a cena de absurda. Mas não o fez porque percebeu a cara de desculpas sinceras do moço da livraria. JH disse, então, que: uma pena, não tenho cheque nem dinheiro vivo. Não poderei levar os livros porque não tenho como pagá-los. Para surpresa do visitante, o livreiro sacou logo uma proposta. Disse a JH que, de maneira alguma aquilo ficaria daquele jeito. Você vai levar os livros. Dê-me aqui o nome e o endereço do seu hotel ou do seu trabalho. (JH havia dito que não era de Belo Horizonte). Hotel, avenida, quarto e será possível que isso aconteça? Sim, o livreiro envolveu os cinco livros numa sacola, entregou a JH e prometeu: amanhã cedo meu funcionário procurará você no seu trabalho com a máquina manual de crédito. Pode ir e obrigado, desculpe qualquer coisa. JH saiu atônito. Enquanto andava pelo corredor em direção à sala de filmes, encontrou o casal amigo. Contou a história e o amigo logo se apressou em tirar dinheiro da carteira. Por favor, vá lá e pague o livreiro. Amanhã a gente acerta. JH correu até a livraria com as notas na mão. Antes mesmo que pudesse explicar, já indicando o pagamento, o livreiro advertiu: alto lá, nosso trato é outro, meu amigo. Pode guardar seu dinheiro. Amanhã meu funcionário vai te procurar. JH ficou perplexo, quase comovido. Não é possível. Tem certeza? Sim, absoluta, dizia o livreiro com os olhos pontiagudos. E JH foi embora com os livros na sacola. No dia seguinte, fez a transação no modo crédito com o menino da livraria que o procurou no trabalho. E me contava isso com os olhos incrédulos de quem viu milagre, mas não acreditou. Embora essa boa impressão tivesse se mantido, JH contava, lastimoso, que, no mesmo dia, já à noite, foi com o mesmo casal comer num bom restaurante, desses freqüentados pela mineirada de elite, restaurante com cara de padaria chique, café bacana, cardápio caro, músicos e artistas plásticos repetidos pela mídia impressa, fregueses de revistas de colunas sociais. O lugar era agradável, o clima era bom, os amigos eram simpáticos, mas a mesa custou a vagar. Assim que conseguiram uma, JH esbarrou na cadeira de trás quando tentou se sentar. O esbarrão abalou um milímetro o moço sentado de costas, que logo se levantou e, com o dedo em riste, ameaçou, com cara de demônio: se você esbarrar na minha cadeira novamente, eu te darei um tiro. JH pediu desculpas surradas, que não foram aceitas com um "não me interessa" seguido da reiteração da ameaça de morte. JH me conta que o livreiro fala mais alto na memória, mas que ainda se pergunta: que cidade é aquela em que tipos tão diferentes me recebem de formas tão opostas? Alucinado pela esquizofrenia da capital mineira, JH ainda pensa em voltar à livraria. É isso mesmo: viva a diversidade, não é não? Ana Elisa Ribeiro |
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