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Sexta-feira, 6/7/2007 Ler em voz alta Ana Elisa Ribeiro
Dizem que Homero, o grego que contava a Odisséia e a Ilíada, não sabia escrever. Isso não soa estranho? Para nós, essas obras trazem a idéia de um livro grande, cujas versões, em prosa ou verso, existem sob a "autoria" de um homem que cuidou de revelar as histórias de Ulisses (ou Odisseu), nas batalhas mais famosas do mundo, mesmo que sejam, em alguma medida, ficcionais. Se Homero não sabia escrever, como seus textos chegaram até nós? Por meio do trabalho de outros homens que se ocupavam de transcrever o que os artistas contavam e cantavam em público. Na verdade, não o "público" como o conhecemos hoje, muito menos o "consumidor", mas um espectador, platéia que chorava e sorria à medida que a história se desenrolava, como fazemos ao assistir à tevê. Depois que a escrita tomou conta do mundo e algumas culturas passaram a considerá-la importante (por vezes um sinal de civilização), os conceitos de "autor", de "leitor" e mesmo de "público" foram tomando a forma que têm hoje. Essa é uma história que durou séculos e vem acontecendo em sintonia com as tecnologias, novos aparatos para ler, escrever e publicar. Escrever, o ato de utilizar um equipamento, mesmo que pequeno, para redigir palavras, durante certo tempo, foi uma "nova tecnologia". Assim como, hoje, outros equipamentos sofrem críticas e são acusados de tornarem pessoas e até mesmo as línguas piores, a escrita também teve seus dias de vilã. Para alguns, ela seria responsável pela perda de memória do homem. Já que não seria mais necessário memorizar informações, a humanidade estaria fadada a se esquecer dos feitos importantes e dos fatos históricos. Para outros, defensores da nova técnica, a escrita poderia registrar documentos e textos que se perderiam com o tempo. O texto escrito (ainda com a mão) teria a propriedade de fixar histórias e memórias. Enquanto os homens viviam seu litígio sobre as vantagens e desvantagens dessa nova tecnologia, os poetas continuavam declamando textos para um público cada vez mais interessado, até porque essa foi, para a maioria das pessoas, a única maneira de aprender histórias e saber das notícias, porque saber ler (e escrever, que não eram aprendidos ao mesmo tempo) era um luxo que pouquíssimos poderiam alcançar. Enquanto a escrita e seus equipamentos desenrolavam uma história particular, a "publicação" de textos pela voz acontecia com freqüência. À medida que o registro escrito foi absorvido pela população, seja para ler ou para escrever, e as tecnologias foram melhorando essa ação, os textos declamados foram rareando, mas jamais deixaram de existir, embora seu veículo mudasse. Há algo de comum entre Homero (o homem que falava textos), os lectors (homens que liam livros para os operários das fábricas de charutos cubanos) e os poetas que lêem em público nos fóruns atuais. A vontade do homem de registrar fatos e notícias sempre moveu o desenvolvimento de tecnologias para escrever, gravar e filmar. Enviar mensagens para quem está longe também foi um desejo humano que acabou dando um empurrãozinho às invenções dos correios, do telégrafo, do telefone, do rádio e, mais recentemente, da Internet, ainda que para várias dessas tecnologias os usos, inicialmente, fossem restritos às forças militares. Cada uma dessas tecnologias demorava a ser compreendida como "meio de comunicação". Numa cadeia fascinante, Homero contava as histórias, que eram transformadas em escrita e multiplicadas em grandes livros. Com o passar dos séculos, assim como os computadores, os livros foram ficando cada vez menores e a escrita foi se tornando uma ação cada vez mais fácil de executar. Se tábuas de cera eram pesadas, preferiu-se o pergaminho, que se rasgava. O papel era um recurso mais barato e, de certa forma, mais durável. Também era mais barato, assim como as tintas que foram sendo inventadas para se fixar no papel. Os tamanhos dos livros não permitiam carregá-los na rua, ler em qualquer lugar (crítica que sofrem, hoje, os computadores). Para isso inventaram os códices, folhas menores empilhadas, algo muito próximo dos livros que temos até aqui. Daí em diante, o leitor pôde nascer e se mostrar. Com os livros portáteis foi possível ler nos bancos de praça, nas ruas, nos clubes, nos bondes, ônibus e metrôs. No entanto, os poetas continuavam declamando poemas. Os arautos continuavam dando notícias. O boato e a fofoca já existiam, assim como os especialistas nisso. O que ocorreu foi que alguns homens passaram a ler também em público, a "publicação", para que mais pessoas, especialmente quem não sabia ler, ficassem sabendo das histórias e da História. Analogamente, o escriba poderia escrever para quem não detivesse esse conhecimento. Assim ainda hoje, como mostrou o filme Central do Brasil. O alemão Gutenberg inventou uma maneira menos árdua de fazer cópias de um livro. Em lugar da mão e da pena, era possível fazer uma espécie de carimbo e produzir várias páginas por dia. A primeira Bíblia impressa saiu da oficina dele. No entanto, embora hoje ele seja considerado uma figura histórica importante, sofreu muitas críticas. As cópias feitas com tipos móveis foram acusadas de menos confiáveis e mais "frias". E mesmo com a prensa de Gutenberg e todas as revoluções que a História registrou, os leitores públicos continuavam sua jornada. Nem sempre declamando seus textos, mas também, agora, lendo textos escritos para quem não podia ler. Oralizando poemas e notícias para os analfabetos, que ainda eram muitos. A leitura silenciosa foi também uma invenção muito posterior à escrita. Embora isso seja controverso, parece que até a Idade Média, ler e falar alto eram ações conjugadas. Até que se descobriu que os olhos e o cérebro podiam captar as letras, os sons e os textos sem a mediação da voz. Há registros de sérias críticas a esse jeito novo de ler. A "invenção" da leitura silenciosa parece ter acarretado até mesmo a publicação de mais obras heréticas e pornográficas, já que não se podia mais monitorar o que o leitor estava lendo. Ler em silêncio ou ler alto. Há, até hoje, quem prefira ler em voz alta para compreender melhor o que lê, ou para não se desconcentrar. Da difusão da escrita, antes de Cristo, até nossos dias, as técnicas de compor, ler, escrever e publicar sofreram mudanças que, na verdade, não passam da superfície. A idéia de registrar informação permeia todas as iniciativas que transformaram a escrita, assim como a velha discussão sobre durabilidade (papel, disquete, CD). Publicar pela voz, pelo livro ou pelo blog são parte de um mesmo sistema da era da escrita. Mudam os modos, muda o acesso das pessoas às técnicas, mas não muda o princípio disso tudo: o verbo. Ainda hoje, com tanto sucesso quanto na Europa medieval, artistas lêem para o público em cafés, fóruns, praças e largos. Em 2004, nos armazéns do Porto do Rio de Janeiro, a Primavera dos Livros reunia jovens autores e oferecia ao público, além das discussões sobre a literatura contemporânea, a leitura de contos de autores recém-publicados em papel. O Palácio das Artes, em Belo Horizonte, oferece ao público, todas as terças-feiras, a leitura de contos e poemas pelo próprio autor, além da interpretação, por um ator, dos textos de um escritor falecido. São poemas e contos publicados em papel. A leitura em voz alta, até com o uso de microfones, é oferecida não mais a quem não sabe ler, mas talvez a quem não consiga ter acesso aos livros, em geral mal-distribuídos ou com tiragens baixas, vendidos, quando encontrados, a preços pouco populares. As leituras públicas de textos literários acontecem a despeito da correria do centro da cidade e da poluição sonora do trânsito das 18h. Um oásis literário em plena metrópole cujos DJs oferecem suas peças favoritas. Impressionante e importante é salientar o quanto as platéias têm crescido e têm reagido a essas leituras. É emocionante verificar que as pessoas saem do trabalho (ou chegam mais cedo) e dão uma passadinha nos eventos para ouvir um ou dois poemas, sorriem, batem palmas, pedem autógrafo e se emocionam com os textos oralizados. Em 2005 e em 2006, um evento em Ouro Preto reuniu escritores de todo o país. Para não ficar apenas na teoria, mesas de escritores foram compostas para ler em voz alta nos bares da ex-capital mineira. Alice Ruiz, Fabrício Carpinejar e outros poetas fizeram suas leituras, ofereceram poemas ao público, dentro de belos restaurantes, enquanto as pessoas comiam boa comida sem, no entanto, deixar de prestar atenção. Os aplausos eram seguidos de brindes; os sorrisos eram a entrada para os pratos principais. Na rua, outros poetas puderam provar minutos de Homero quando subiram ao palco para ler poemas no meio da praça. Não ficaram reservados às paredes antigas da cidade e nem evitaram o público que não podia pagar os preços do cardápio. Ao subir uma pequena escada, descobriram um palco montado no meio da rua, próximo ao legendário hotel e restaurante Toffolo, onde se hospedaram e beberam Drummond, Bandeira e outros escritores. A leitura, amplificada pelos microfones, era acompanhada de uma noite fria e sem chuva. O público se aglomerava, de cachecóis e luvas, os olhos atentos voltados para cima. À medida que os poetas liam, as pessoas aplaudiam, assobiavam e se exaltavam com um ou outro texto, uma palavra, um palavrão, uma boa história, um escorregão. Ao final, perguntavam onde encontrar certo poema, para dar ao namorado, para reanimar alguém, para levar aos alunos, para dar uma cantada, uma indireta, uma ofensa. Ouvir era prazer imediato; ter o livro era um fetiche de colecionador. Enquanto os computadores e a Internet se aperfeiçoam, ganham adeptos, inventam novas interfaces para ler e escrever, os espectadores da leitura em voz alta estão mais "na moda" do que nunca. Os leitores públicos continuam em ação, cada vez mais digitais e interconectados, mas não menos interativos em carne e ossos. Em vez de pensar como se as tecnologias se excluíssem e se prejudicassem umas às outras, é preciso pensar que se complementam, se acoplam, se dividem em funções, meios, serventias e formam, como defendem Peter Burke, Maria Augusta Babo e outros estudiosos, um "regime de escrita", uma espécie de conjunto de maneiras possíveis de se realizar um texto. Eis aí nossos Homeros escritores no centro da capital lendo para leitores com notebooks nas mãos. A leitura pública aos letrados, muito embora cada um deles tenha em casa algum livro impresso. Seja digital, seja analógica, a leitura e a escrita continuam possíveis, penduradas e conjugadas à voz. Ana Elisa Ribeiro |
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