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Quarta-feira, 17/1/2007
Outra leitura para O pequeno Príncipe
Guga Schultze

O Pequeno Principe, aquarela de Saint-Exupery

Mexendo nas minhas estantes - os livros indisciplinados como membros de uma gangue preguiçosa - encontro o pequeno volume, meio rasurado, marcas do tempo sujando a lombada, pequenos rasgos nas pontas e com aquele desenho do menino vestindo uma espécie de fardão da Academia Brasileira de Letras (aquelas famosas aquarelas, tão melhores que tanta coisa por aí).

Faz muito tempo que não o seguro nas mãos; me falta coragem - o pequeno livro atraiu para si o desprezo maciço de intelectuais fajutos (mas intelectuais de qualquer forma) e, pior ainda, de humoristas-intelectuais que apreciam mais, digamos, um Nelson Rodrigues. Através desses caras fomos informados que todas as "misses", todas as moças (que eles gostariam de jogar numa cama) leram na vida esse único livro e choram de emoção só de enunciar o título.

O pequeno Príncipe (Agir, 2006, 94 págs.) gerou uma tsunami de lágrimas que varreu o planeta, desde que foi lançado pouco antes do final da Segunda Guerra Mundial. O poder desse relativamente pequeno manuscrito é assustador: intelectuais se sentem extremamente desconfortáveis olhando para o garotinho louro cuja aparência é uma síntese de todos os símbolos "burgueses" da ternura: cachecóis, pantalonas, sapatinhos delicados, bochechas rosadas, cabelos louros levemente desarrumados; anjinho, em suma. Principezinho. E de lambuja todo o simbolismo do sentimentalismo explícito, aquelas flores, aquelas estrelas, a solidão, o vento, suspiros, a morte que rodeia em silêncio um amor puro (sic) que não terá tempo de se realizar, a gente pressente, não terá outra chance. Mas o texto é bom. É infernalmente bom, é uma areia movediça. A gente afunda fácil. A única alternativa para não ser absorvido é ler depressa, passando os olhos e mantendo em mente que aquilo é piegas mas, se vacilar, se abrandar a marcha, o piegas nos pega.

O texto força a construção de barricadas constantes contra o mar de lágrimas que, se bobear, acha a fresta e rompe o dique. Quem não tem dique nenhum alegremente se afoga, vai a pique. O tom é pausado, grave, reflexivo. Existencial (é francês, n'est pas?). Saint-Exupéry nos deixa malucos porque se move livremente num sentimentalismo que, a experiência nos diz, é paralisante. Era pra ser. Toda breguice é ruim porque, entre outras coisas, paralisa o discernimento; mas Saint-Exupéry sobrevoa seu deserto bizarro e o faz de uma altura considerável. Daí resulta uma situação meio paradoxal na leitura do Pequeno Príncipe: aquele sentimentalismo todo é quase impessoal.

Algumas cenas memoráveis (resisti à palavra "antológicas" porque são passagens em que o contexto é fundamental, não podem deixar o livro, fugir da obra e respirar separadamente), como o diálogo do pequeno, sentado no alto das ruínas de um muro, no meio do deserto, com a serpente. Através do narrador ouvimos apenas as falas do menino e, juntamente com o narrador, ficamos aterrorizados ao perceber que o pequeno negociava, com uma serpente, a passagem de volta ao seu planeta longínquo, ou seja, negociava a própria morte.

E as ilustrações, as aquarelas simples (e quase simplórias) de Saint-Exupéry conseguiram cristalizar com uma propriedade rara o que o livro tem de apelo emocional. Como disse um velho amigo, a gente tomando umas e vendo um álbum de formatura onde ele reconhecia algumas antigas namoradas, ele já meio tonto, "são shurikens (lâminas em forma de estrela) lançados por um ninja malvado, bem no coração". As ilustrações de Saint-Exupéry caberiam nessa categoria. A imagem não é de todo má.

Quantas vezes li O pequeno Príncipe? Umas cinco ou seis, a maior parte delas antes de chegar a adolescência. Depois veio a "idade crítica da razão", mas o eco da voz de Exupéry é profundo e também facilmente identificável em "n" produções de quinta categoria, josés mauros de vasconcelos, paulos coelhos, fernãos capelos gaivotas e similares que, inclusive, deram sua decisiva contribuição para deturpar, talvez de modo irreversível, o charme do original.

O pequeno Príncipe deflagrou uma onda de lugares-comuns - que se tornaram comuns depois dele - sobre relacionamentos e coisas tais, mas que não são, na verdade. Há, pairando por ali, uma sabedoria real que os dissipa.

E eu consegui uma fórmula pessoal para enfrentar o problema do Pequeno Príncipe: me concentro no fato de que é literatura fantástica, quase uma ficção-científica, no final das contas. Um homem perdido num deserto encontra um pequeno alienígena que encarna, por um exercício misterioso de cósmica e profunda bondade, sua (desse homem) própria infância. Um homem marcado para morrer se encontra consigo mesmo, na sua pureza original, num lugar ermo da Terra. Sabemos que o lugar existe (o Saara), mas não como está no livro. Ali é um deserto visionário, o que restou dos Jardins do Éden, com suas criaturas mitológicas, a raposa, as rosas e a serpente, um poço de água fresca com balde e roldanas; um deserto transformado numa espécie de paraíso pela presença do pequeno ser que veio de outro planeta. Naquele pequeno alien o homem vê o reflexo de si mesmo - e de todos os homens que um dia foram pequenos e príncipes em seus minúsculos e breves domínios.

As questões pertinentes a essa revelação são aquelas que estão discutidas no livro, escrito exatamente antes do fim da Segunda Guerra, quando então Antoine de Saint-Exupéry era capitão e piloto de aviões. Fazia reconhecimentos aéreos e morreu em sua última missão, em 1944, aos quarenta e quatro anos de idade, velho demais para o rock'n'roll ensurdecedor dos combates e jovem demais para morrer. Seu corpo nunca foi encontrado e eu quero crer que o livro, escrito (ou publicado) um ano antes, tenha sido uma premonição do que seriam seus últimos momentos - e quem poderia morrer de uma maneira melhor? Ele caiu, com seu avião, em algum lugar deserto e seu principezinho veio e o levou.

Para ir além





Guga Schultze
Belo Horizonte, 17/1/2007

 

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