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Sexta-feira, 11/1/2008
Máximas
Ana Elisa Ribeiro

Quase morreu
Ninguém me contou. Eu ouvi quando meu avô perguntou ao médico quanto tempo ainda tinha de vida. Passara semanas no hospital por conta de uma coisa tipo cirrose hepática, mais branda, eu acho. Pelo menos foi o que disseram. Recuperou-se, mas só sobreviveria à custa da disciplina de não beber mais nada alcoólico. Recebeu essa notícia com o cenho fechadíssimo. Dava para ouvir lá no coração dele: será que isso é sério? Na cabeça, ecoava a pergunta: será que vale a pena? Rompeu o silêncio e olhou bem na cara do médico: doutor, me diz com franqueza, quanto tempo eu tenho de vida? O médico riu: não dá para prever, depende do que o senhor fizer. O cenho desfranziu, deu uma vergonha nele, ficou sem jeito. O médico quis saber qual era o raciocínio por trás da pergunta. Ele disse, submisso: é que se fosse pouco, eu ia continuar bebendo.

Infarto
Diz ele que é uma dor lancinante. Naquele caso, foi assim atrás da garganta. Diz que é a parte de trás ou do fundo do coração, a parte de baixo. Obstruiu uma artéria, mas não era a dominante. Sorte de todos os jeitos. Sentiu que ia infartar e já foi logo tomando as providências. É mandão até quando está na tábua da beirada. Dizia pro motorista do carro que o socorreu: não corre não, vamos com calma, rapaz. No hospital, ele mesmo narrou tudo para os médicos. Teve outro acesso, mas logo lhe deram uns remédios porretas. Salvo. Dez dias de CTI e outros nomes: Unidade de Cuidados Continuados, Unidade Coronariana. Não tinha nada para fazer. Não podia mais fumar, que aí já era demais. Recebia umas visitas emocionadas, estava preocupado com os chinelos, o pedreiro terminando a obra em casa. Hospital é um tédio. Os filhos mandaram uns livros e o walkman. Também mandaram revistas semanais. No primeiro dia, nem podia virar de lado. Aqueles eletrodos e fios todos azucrinavam. Os horários de visita mudavam de acordo com a ala em que estava hospedado. Depois do terceiro dia, ele mesmo ligava para casa e dava as ordens ao pedreiro. Ele mesmo recebia e levava as visitas à portaria do hospital. Não deixou a enfermeira dar banho nem quando estava pior. Vê se eu vou tomar banho com esse copo d'água? O melhor de tudo era lembrar de casa. Daí a alguns dias, depois que notou que estava mesmo vivo e que a cirurgia seria pequena, veio a conclusão: infartei porque parei de fumar. Se não tivesse parado, o corpo não teria sentido falta.

Amizade, na saúde e na doença
Voltar para casa é um alívio muito grande. O cheiro de vela do hospital fica impregnado na roupa, nos pêlos de dentro das narinas. Uma praga. Chegou em casa e foi tomar o melhor banho do mundo. Os filhos ficaram esperando aliviados também. O neto ainda era criança de nem notar os acontecimentos. Ainda não havia espetáculo para ele. Quando desceu, ganhou abraços menos travados e olhares perscrutadores. Depois de dois dias em casa, sentindo-se como uma borboleta, resolveu voltar ao bar. A família nem acreditou. Vai fazer o quê no bar? Só rever os amigos, foram todos tão atenciosos. E lá estava a homenagem: o taco de sinuca preferido tinha sido tirado de circulação. Junto do taco havia um bilhete, dobrado à maneira das simpatias, onde se lia: este taco só sai daqui quando o Gil voltar. Alegria. Agora só na Coca-cola. Do cigarro, nem o cheiro, embora às vezes o gesto lhe venha.

Idas e voltas
Primeiro M foi para o Sul. Estava apaixonada, pediu licença sem vencimentos no emprego público e foi morar com o namorado. Mesmo de longe, não se divisava ali grande alegria. Os e-mails pareciam pedidos e qualquer frase escrupulosa a deixava de sobreaviso. Certa vez, deixei-lhe um fecho impiedoso na mensagem de e-mail: a vida a dois é quase impossível. Eu queria afirmar que é, mas modalizei para não dar a notícia assim, à queima-roupa. Ela escreveu até crônica sobre isso. Teve mágoa e desalinho. Vou fazer o quê? Eu a encontrei de volta faz um mês. Perguntei: está passando as férias? Ela foi delicada, talvez consigo mesma, e disse: não sei. É melhor que saiba logo: estava mais linda do que nunca, mais do que quando foi. Se não tiver dado certo, a beleza lhe aumentou. Pode ser dessas que ficam lindas na tristeza.

Saídas e chegadas
P disse que não agüentava mais esta cidade horizontina que de horizonte não tem nada. Gabou-se de ir para bem longe, Natal, na ponta mais norte que podia, também afinando-se em combinações com um amor que achara por lá. Maior do que os daqui, mais firme, mais válido. Aqui não tinha emprego, não respirava solto. Adoramos quando foi e pareceu que seria feliz. Só que chegou em Natal e o emprego não veio. Também o amor não a sustentou, talvez nem a si. Não sei. As pessoas não falam muito bem do que não entenderam. E então ela me mandou uma mensagem dizendo que havia encontrado o caminho de volta. Queria trabalho, vida, amigos, estudos, dinheiros, só que, desta vez, na mão da vinda. Sorte que os caminhos costumam ter dois lados. A maioria deles. O Deleuze, eu acho, dizia uma coisa assim: é preciso ficar parado para receber melhor os devires.

Footing
Mesmo nas quermesses do bairro e nas festas juninas, eu gostava de ficar parada num ponto estratégico da festa. De lá eu via tudo, todos os movimentos, inclusive aqueles que vinham na minha direção. Quem estava zanzando tinha outro jeito de ver, mas nem sempre estava fora do ponto cego.

Longes
AC foi para a Espanha. Voltou caramuja. Não queria sair de casa. Até me mandou um e-mail pedindo socorro, mas não tive tempo ainda.

Longes que deram certo
S está na Alemanha. G está em São Paulo. R esteve na Alemanha e faz planos de voltar, assim que o bebê imprevisto deixar. H vive viajando pelo mundo, mesmo com uma garotinha de um ano embaixo do braço. A estuda em Portugal e parece bem. Até o namoro deu certo, embora não tenha sido ele a principal razão da ida. Já disse a ela para não voltar. SI foi estudar na Espanha e estava segura. F já morou nos grotões, quando era engenheiro, agora escolhe só capitais. Neste momento, está em Brasília. C vive falando em ir, mas não vai. M vive em Paris, casou-se pela segunda vez, tem até sobrenome. Nenhum deles é turista. Enquanto isso, fiz minha vida aqui. Vivo prometendo visitas, de agora em diante, acho que posso pensar.

Se eu fosse um viajante
Eu mandava, eu mandava ladrilhar a sala da minha casa primeiro. Em pousadas, as almofadas não têm o meu cheiro. Sou que nem gato doméstico. Eu iria a Portugal ver onde meu tataravô nasceu e de onde ele partiu (e não mais voltou), só para pensar por que é que ele não quis ficar. Iria à Itália procurar as fábricas de papel desativadas. E à França explorar antigas oficinas tipográficas. A Espanha me parece a casa de A. Eu a vi dançando a dança flamenca. Eu não iria a nenhuma praia deste mundo.

Sobrevivente
Ainda me passou algo pela cabeça. Meu marido veio para onde eu estou por minha causa. Certa vez, me disse que seu lugar seria onde eu estivesse, sem restrições. Achei mais bonito do que eu te amo. Até mais sonoro. Depois de quase três anos, ele não voltou à terra natal. Não desistiu, certo? Deve ter ficado tentado às vezes. Mas acho que ainda fica mais tentado por mim.


Nossa viagem a dois


Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 11/1/2008

 

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