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Segunda-feira, 12/2/2007
Silêncio
Verônica Mambrini


Ilustra by Guga Schultze

Os ônibus rugindo presos sobre as avenidas, as maritacas em revoada barulhenta e algazarra, pessoas matraqueando cada vez mais alto em ambientes fechados. O rádio de um vizinho, a televisão eternamente ligada, o barulho do Messenger chamando insistentemente. O zumbido interminável e subterrâneo das CPUs processando, dos ventiladores esfriando as máquinas pensantes. A balada barulhenta na rua de baixo, os cachorros que latem dia e noite, as motos competindo num racha de madrugada. Turbinas de aviões vibrando, marteladas e furadeiras em uma reforma que nunca termina, música surgindo abafada não se sabe de onde, todos os sons transformados numa compacta massa sonora. A pancada aguda e impiedosa de um tiro. Pneus derrapando, burburinho, chuva, o metralhar nas teclas do computador. O motor da geladeira, a bomba de ar no aquário, a resistência aquecendo a água do chuveiro. A madeira da casa e dos móveis estalando, a respiração suja e rouca, as patas das baratas se arrastando por baixo dos móveis. A freqüência sutil e persistente da rede elétrica por dentro das paredes. E mesmo sendo uma ausência, em qualquer casa urbana o silêncio surge como uma ilha, material e sólido.

Ruído e silêncio em excesso são, ambos, enlouquecedores. Mas, em nome de valores como progresso e de uma suposta civilização, a sociedade ocidental contemporânea se construiu no som, optou por ele. O ruído é um resíduo da modernidade do qual parecemos nem mesmo nos dar conta. O efeito-estufa, a implosão da continuidade do tempo e a fragmentação da realidade, o excesso de imagens e a rapidez com que elas passam e se alternam diante do olhar, todos esses sintomas da pós-modernidade e da sociedade industrializada já foram de um modo geral assimilados, mas ainda incomodam, atordoam. O ruído, efeito colateral menor, não é percebido tão intensamente não porque não incomode; mas porque sua abundância afeta a capacidade de sentir, pouco a pouco.

As novas gerações já assimilaram o excesso visual, ainda que ele seja incômodo. É impossível não ceder, já que ele vem da televisão há muito tempo, do computador recentemente, e constantemente surgem novas mídias como suporte para um fluxo cada vez maior de informação. No que se refere a urbanismo, por exemplo, surgiu recentemente a tentativa de domar o cenário urbano por meio da lei "Cidade Limpa", que regulamenta a publicidade em outdoors e fachadas em São Paulo desde janeiro deste ano. Independentemente de dar certo, é uma tentativa de construir uma cidade visualmente mais harmoniosa. O mais perto que existe de uma lei para minorar o problema da poluição sonora em São Paulo é o "Psiu" (executado pela Divisão Técnica de Fiscalização do Silêncio Urbano), que fiscaliza o barulho de casas noturnas e restaurantes, templos religiosos e outras atividades cuja natureza cause poluição sonora. Mas, conforme dizem as leis que determinam a ação do Psiu, é preciso que o nível de ruído seja prejudicial à saúde ou bem-estar da população. Geralmente, quando esse tipo de fiscalização pública entra em ação, os níveis já extrapolaram o saudável há tempos e estão no limiar do suportável. O som ambiente sobe subrepticiamente, continuamente.

O som e o silêncio se tornaram uma questão fundamental para mim. A audição, como todos os sentidos, pode ser treinada, estimulada. Simplesmente refletir sobre ela, focar a atenção no que (não) se ouve é suficiente para começar a ouvir melhor. Respeitadas as limitações orgânicas de cada aparelho auditivo, é sempre possível ouvir mais. O inferno começou para mim de forma banal: um dia, ao desligar o computador, percebi que o ambiente que parecia silencioso para mim na verdade tinha o ruído forte de fundo da máquina. Barulho menor e uniforme, mas imperceptível até ser interrompido - um artifício do cérebro para manter a sanidade. Uma caixa de Pandora que mudou não só minha audição, mas como meus outros sentidos mediam minha percepção de mundo. É por isso que mais barulho automaticamente significa menos sensibilidade, incapacidade de captar nuances.

Desde então tento manter períodos de "jejum de sons"; literalmente um protesto silencioso. Pessoas que ligam a TV apenas para interromper o silêncio me incomodam, e não é pelo barulho em si, é pela falta de capacidade de lidar com o que o silêncio simbolicamente sugere: solidão, por exemplo. Metrô, motocicleta, tráfego de caminhão, caminhão de lixo: ruídos que estão constantemente na rotina, e que sequer entrariam numa descrição de romance urbano (mais charmoso falar de um barulho qualquer isolado na madrugada). Mas esses ruídos oscilam entre 90 e 120 decibéis, nível que pode causar perda irreversível da audição. Não é alarmismo: esse grau de ruído já foi socialmente assimilado como normal, sem ser. Uma solução prática para o problema é inviável, porque interfere na economia. Não dá para parar ônibus e metrô, tampouco imagino que existam empresários dispostos a investir em redução de emissão sonora no transporte público. Essa questão, perto de mil outras mais urgentes, é totalmente irrevelante.

(Levanto e vou até a cozinha buscar um copo d'água. Pela janela, vejo o lampejo claro da lua, por trás de uma camada de névoa. Resolvo sair até o quintal e olhar com calma, na noite de lua e verão, uma paisagem querida - é o último mês na casa em que cresci e vivi até hoje. Não só a paisagem, mas o ambiente sonoro é familiar. O vento ciciante, baixinho, uma ou outra motocicleta - sempre há uma, não importa a hora - e grilos, constantes, eternos, som de fundo da minha vida desde sempre. Uma combinação de sons tão poderosa quanto um cheiro da infância, como a voz de uma pessoa amada que já morreu.)

Creio que, com o perdão do terrível trocadilho, não haja eco para um breve manifesto em favor do silêncio, em seus infinitos graus de diluição. Mas ainda assim, é possível deixar de fazê-lo?

Nota do Editor
Leia também "Ensaios sobre o silêncio"

Verônica Mambrini
São Paulo, 12/2/2007

 

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