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Quarta-feira, 28/2/2007
Romancis
Guga Schultze

De uma maneira geral os brasileiros são emocionalmente atrofiados e isso se reflete numa parte extensa da nossa produção literária, no (sub)desenvolvimento dramático dos enredos dos romances, contos e até em poemas. Temos, por exemplo, uma fauna conhecida habitando um sem número de narrativas, longas ou curtas: o gigolô, a prostituta, a boneca deslumbrada, o corno e o pequeno funcionário público - tristes esboços de figuras urbanas - e ainda o retirante, o sertanejo, o coronel, o pobre diabo nordestino e as figuras caricatas das cidades do interior, os padrecos, prefeitos, artistas mambembes, comerciantes e, outra vez, os bordéis com suas cafetinas e funcionárias que muitas vezes exibem uma sabedoria chulé que, no entanto, está bem acima da capacidade intelectual de seus fregueses.

Encontra-se nessas páginas um verdadeiro enxame de ninfomaníacas de todas as idades, uma obsessão nacional; homens que sofrem tormentos indescritíveis carregando seus cornos, ou sofrem na intimidade sua homossexualidade atormentada, ou a concupiscência generalizada como modus vivendi em velhos priápicos, velhas dissolutas, todos recebendo dos autores uma compreensão e, por que não, uma tolerância tácita: somos assim mesmo, atrás de nossas máscaras hipócritas.

Apesar das ridículas tragédias pessoais em andamento, todos parecem bastante satisfeitos em compartilhar, com outros personagens e com o leitor, seus sentimentos suburbanos, sua estupefação caipira, sua desconfiança irremovível por tudo que pareça ameaçar a linha estreita que limita seus horizontes atrofiados. Respondem a um hedonismo ralo, ao carpe diem ingênuo das pequenas gratificações, à ansiedade de paixões inconfessáveis porque superficiais demais para causar tanto alvoroço. É sintomático que nosso poeta-mor seja emocionalmente seco e árido como poucos. É sintomático também que gerações mais novas se voltem para o próprio umbigo onde tentam digerir a grossura acumulada ao redor, buscando, por exemplo, na elegância discutível de um Machado de Assis, um estilo mais elaborado de prosa.

E no entanto, escritores, leitores - nós, brasileiros - fugimos como o diabo da cruz do que possa ser considerado como "grandioso". A palavra nos incomoda com seu corolário de formalidade e rigor. Não temos cacife para bancar viagens até profundezas que nos são desconfortáveis, aos mares escuros do sentimento poético, ou para vôos acima da superfície das nossas pequenas taras nacionais, incestos e adultérios, paixões carnavalescas, paixões futebolísticas, paixões etílicas variadas, o humor primitivo de Pedro Malazartes, o gás lacrimogêneo das telenovelas - o pequeno circo mambembe montado na alma de cada um.

Contra esse mosaico kitsch em verde-amarelo, Paulo Francis costumava lançar suas pedradas - alguém apelidou sua arma de metralhadora giratória. Mas, brasileiro ele também, talvez preferisse o bodoque, mais certeiro, contundente; similar à funda do David bíblico que, com um único arremesso, derrubou o gigante Golias. Só que, ao contrário desse último, o nosso gigante está adormecido, deitado eternamente em berço esplêndido e não há pedra capaz de despertá-lo.

Os escritos de Francis contêm essa irritação permanente contra a mediocridade geral; é quase sua marca registrada. Sua trajetória política ou ideológica, marcada pela famosa virada de folha que provocou sua excomunhão da ilha vermelha - pois a esquerda é uma ilha, cercada em todas as direções por um oceano que os habitantes da ilha, numa redução tácita, apelidavam de "direita" - é um movimento menor, de franco-atirador se posicionando, escolhendo um lugar melhor no campo de batalha. O alvo permanece o mesmo: a dificuldade, tão brasileira, com a cultura no seu sentido mais amplo.

O arsenal de Francis foi formado com leitura exaustiva, livros principalmente. Lia muito, lia rápido e lia bem; três trunfos num jornalismo que costuma, muitas vezes por necessidade pura e simples, voltar-se sobre si mesmo, apenas. Jornalistas lêem outros jornalistas, na maioria das vezes. Francis também, mas não levava muito a sério esse modus operandi, contrapunha a ele sua vasta bagagem literária. Desprezava o puramente factual, efêmero por natureza e concentrava-se em significados pertinentes, históricos ou culturais, das notícias.

Uma intuição de escritor e, como escritor, Francis produziu uma autobiografia memorável, O Afeto que se encerra e dois romances, Cabeça de papel e Cabeça de negro, além de duas novelas curtas num único volume, As filhas do segundo sexo. Cabeça de papel foi seu primeiro romance, lançado em 1977. O pano de fundo é a realidade política na qual Francis viveu a maior parte da vida e na qual se formou cultural e politicamente; a grande questão ideológica que orientou por décadas a intelligentsia brasileira: o impasse entre as duas superpotências da época, os EUA e a URSS e a conseqüente pressão que esse confronto produziu em praticamente todo intelectual. A ambientação é a zona sul do Rio de Janeiro, sob o governo do então regime militar.

O romance no entanto não é político, ou seja, não defende tese, utopia ou ideologia. É, mais, um romance que se insere na tradição do romance psicológico, no retrato bem acabado de personagens, na articulação exímia desses personagens enquanto vivem a vida que lhes é dada viver e que, diga-se de passagem, costuma ser mais rica e mais intensa que a do próprio leitor. O livro apresenta esse problema sério, entre outros, para o leitor desavisado: personagens que são, em média, mais inteligentes ou mais brilhantes que ele. São a elite no Brasil da época e Francis não cede nunca à vulgaridade ou ao caricato prosaico.

Francis se alinha com aqueles escritores que criam personagens extremamente vívidos, capazes de viver em nossa memória como conhecidos reais de carne e osso. Essa é, segundo Harold Bloom, um crítico de quem eu divirjo muitas vezes mas que tem uma sabedoria às vezes inegável, a questão primordial em Shakespeare: a capacidade de criar, por exemplo, um Hamlet, que vive além do texto de onde saiu. Os personagens de Francis têm essa característica rara - além de outras, menos desejáveis talvez: irritar imensamente a crítica que não os absorve por serem assim autônomos e tão fora da costumeira lengalenga cabocla, dos pobrezinhos de corpo e espírito que infestam a literatura nacional.

Tenho lido por aí, com bastante freqüência e por autores diversos, que Francis não era um romancista, que seus romances foram uma tentativa mais ou menos fracassada, etc. Os méritos vão todos para o jornalista Paulo Francis e, conseqüentemente, para o texto jornalístico de Paulo Francis. Acho essa ressalva, no mínimo, apressada, na medida em que o texto em Francis é único. No sentido de ser o mesmo texto, o mesmo estilo, tanto na produção de colunas como na dos romances. Sendo que nos romances o texto está bem mais apurado - há passagens inteiras que poderiam ser transformadas em colunas (jornalísticas) brilhantes - e avança facilmente para um espectro mais amplo, não muito comum nos moldes tupiniquins, do retrato finamente construído de uma realidade a que poucos tiveram ou têm acesso. Ali está Francis e a elite intelectual do país, ou Francis e a classe alta que, por odiada que seja, não deixa de ser o palco onde a peça, que nos concerne a todos, foi montada; sua nêmesis particular e, ao mesmo tempo, o mar onde se sentia como um peixe, waaal..., dentro d'água, é claro.

Guga Schultze
Belo Horizonte, 28/2/2007

 

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