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Quarta-feira, 7/3/2007
Paulo Francis não morreu
Tais Laporta

O que Paulo Francis diria de sua própria morte? Diria, com um mau humor visceral, que "nem a morte acaba com a vida de Paulo Francis". E, mais uma vez, seria amado ou odiado por isso. A prova de sua imortalidade está aí: faz dez anos que o jornalista partiu sem dizer adeus e precisamos explicar a arte de viver sem ele. Serão décadas de jornalismo órfão. Aquela expressão teatral e ironia debochada não vão se repetir.

Isso porque ele morreu no auge da carreira, numa década morna, como um dos mais cultos e polêmicos jornalistas do país. Nem teve tempo de se entregar à costumeira decadência do fim da vida jornalística, como fizeram Joseph Mitchell e Truman Capote - que terminaram num misterioso vazio intelectual. Ao contrário, um dia antes de morrer, Francis gravava para a TV Globo uma análise freudiana das razões que levam o homem a cometer o estupro.

Nem conseguiu desmentir que sua inteligência afiada atravessou o século XXI. "Azar o meu", zombaria de si mesmo, se soubesse que o veneno de suas linhas resiste mau-copiado no jornalismo atual, todos os dias. "Não vou mudar de idéia", afirmaria com teimosia, se soubesse que, dez anos após sua morte, muita gente ainda não digeriu a crítica azeda contra aquele filme tão doce, aquela cantora tão afinada - ou aquele autor tão sensível. O argumento mais recorrente para desmoralizar Francis é o de que atuou mais como um personagem do que como jornalista.

Emprestou ao profissional da notícia um semblante cênico inconfundível, de fato. Mas, por trás da teatralidade das câmeras, não escondia o repertório cultural de um autêntico profissional da imprensa. Se caía na crítica rasa, ninguém pode dizer, por outro lado, que não possuía embasamento teórico. Seja por admiração ou ressentimento, em muita veia crítica circula, até hoje, um sangue ácido como o de Paulo Francis. Mas ao saber que ainda cultiva imitadores, provavelmente criticaria, com sua expressão teatral mais autêntica, "a falta de fosfato e identidade do pobre brasileiro, que o máximo que consegue é admirar um jornalista de meia-tigela, ainda que culto - e se gabar por isso".

Mas por trás da máscara ressentida que Francis usava diante das câmaras, escondia-se um homem doce, companheiro e extremamente solidário, como revelou seu círculo de amigos nos últimos anos. Só depois de sua morte descobriu-se que ajudava colegas de trabalho endividados - atitude que preservava como um segredo de Estado. Nem por isso é possível dizer que Francis não mostrava sua verdadeira personalidade. Mesmo tendo construído um personagem televisivo e escolhido um pseudônimo - encurtou o verdadeiro nome, Franz Paul Trannin da Matta Heilborn - Francis nunca deixou de dizer o que pensava, bem ou mal, de quem quer que fosse. Doa a quem doer.

E, por isso, conquistou uma popularidade invejável, não menor que sua coleção de inimigos. Opinava sem receio de qualquer ditadura do senso comum. Se protegia das bombas verbais com granadas de improviso. Era capaz de ficar "sozinho ao lado da verdade", como lembrou um de seus colegas de profissão, o jornalista Wagner Carelli. Mas nem por isso foi um jornalista meramente panfletário, embora certas vezes, na emoção, trocasse o argumento pela opinião esvaziada. Na maior parte de sua produção intelectual, aliava convicções pessoais a uma profunda bagagem cultural e humanística. Sabia disso e fazia questão de mostrar seu repertório: "Desafio quem não encontre, em qualquer trabalho meu, por mais banal o tema, uma crítica política e ética", disse certa vez. O desafio está lançado há mais de dez anos. Quem vai encarar uma das maiores expressões do jornalismo não-convencional brasileiro?

Apesar de ser visto, por muitos, como autoridade em termos de sagacidade, graça, ironia e repertório, Francis via a si mesmo como um simples e reles mortal. Assim se definiu em uma entrevista à revista Status:

"Sou um homem bem casado, um tranqüilo habitante, que passa a maior parte do tempo escrevendo. Isso me cansa, mas me agrada. Sou profundamente deprimido, a doença do século, sei, mas nem por isso deixa de ser chato. Se não escrevendo, em suma, produzindo, só me sinto à vontade no mundo, temporariamente (...). Sofro de accidie, para usar a palavra bacana, um senso inerradicável de solidão, futilidade e desespero. A culpa não é de ninguém, pelo contrário, nem sei como retribuir o amor dos poucos, porém certos, que gostam de mim. O problema é meu. Eu tenho um hábito, talvez produto do orgulho típico dos deprimidos, de que experimento, em microcosmo, o espírito da época".

Sobre o empenho profissional, Francis não escondia o rigor com que se policiava: "Sempre que escrevo, dou tudo o que tenho. Nunca escrevi uma linha mal cuidada na minha vida, de que eu tivesse consciência. E respeito todo trabalho profissional bem feito, não importa o tema. Jornalismo, claro, como tudo, exige o máximo de liberdade. Sem esta, a vida nunca será plena para ninguém, opressores ou oprimidos. Nem por isso confunda minha depressão, que é espiritual, com desânimo".

Bom ou ruim, a verdade é que nunca se viu nada parecido no jornalismo brasileiro. E nenhum futuro jornalista poderia aprender (ou desaprender) tanto com a escola Paulo Francis, que ensinava a combinação perfeita entre bagagem pessoal, inteligência e improvisação - deixando de lado suas imperfeições, que só não existem na publicidade e nos deuses gregos.

É um desafio saudável ao jornalismo de hoje, e a qualquer um, tentar alcançar a memória, a articulação e o nível intelectual que Francis possuía e usava como ingredientes em uma simples notícia. E fazia, assim, um prato saboroso de informações. Tudo o que se disse sobre Paulo Francis não vai mensurar o que ele realmente representa. Um vasto legado jornalístico. Mas sua voz, inconfundível, fala melhor que nós: "E, se sou alguma coisa, sou um cético".

Tais Laporta
São Paulo, 7/3/2007

 

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