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Segunda-feira, 12/3/2007 O Oscar e a reencarnação Marcelo Miranda Nunca é tarde para falar do Oscar. Se os cinemas insistem em exibir Os Infiltrados e Pequena Miss Sunshine por terem sido "estrelas" na entrega da estatueta mais famosa do cinema, por que este humilde colunista se privaria de tecer comentários a respeito do prêmio entregue no último 25 de fevereiro em Los Angeles? Na verdade vou evitar comentar da cerimônia e da distribuição dos troféus, que disso os leitores devem estar ultra-informados. Também não vou dar uma de Arnaldo Jabor e sair disparando contra o Oscar — tanto porque, apesar das inúmeras ressalvas, ainda é um símbolo que movimenta os cinéfilos e a indústria e, convenhamos, mantém certo glamour. O que me motiva a falar do Oscar no momento é algo que muito vem me incomodando — e, acredito, não apenas a mim (mas posso estar enganado). Se olharmos para a relação de atores e atrizes vencedores do prêmio na categoria de protagonistas, veremos que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood parece estar se rendendo cada vez mais às interpretações baseadas em personalidades reais. Está ficando barbada: apareceu alguém encarnando pessoa viva ou morta, mas que tenha existido em alguma época, e pronto: sai premiado. Mais ainda: quanto mais recente tenha vivido tal personalidade, ou mais parecido esteja o ator fisicamente, maiores as chances. Exagero? Vejamos a relação dos premiados e premiadas desde o começo desta década dos anos 2000: 2007 Forest Whitaker — O Último Rei da Escócia Helen Mirren — A Rainha 2006 Philip Seymour Hoffman — Capote Reese Whiterspoon — Johnny & June 2005 Jamie Foxx — Ray Hilary Swank — Menina de ouro 2004 Sean Penn — Sobre Meninos e Lobos Charlize Theron — Monstro 2003 Adrien Brody — O Pianista Nicole Kidman — As Horas 2002 Denzel Washington — Dia de Treinamento Halle Berry — A Última Ceia 2001 Russel Crowe — Gladiador Julia Roberts — Erin Brockovich 2000 Kevin Spacey — Beleza Americana Hilary Swank — Meninos não choram Se o leitor olhar atentamente a relação, verá que a recorrência dos "mediúnicos" (como iremos chamar daqui adiante os profissionais que se inspiram nas personalidades reais) é razoável. Dos 14 nomes listados acima, nove deles se enquadram na categoria — Forest Whitaker como o ditador Idi Amin; Helen Mirren como a rainha Elizabeth II; Philip Hoffman como o jornalista Truman Capote; Whiterspoon como a cantora June Carter; Jamie Foxx sendo o músico Ray Charles; Charlize Theron fazendo a assassina Aileen Wuornos; Adrien Brody como o pianista judeu Wladyslaw Szpilman; Nicole Kidman revivendo a escritora Virgina Woolf; e Julia Roberts como a dona-de-casa Erin Brockovich. Não é uma tendência, nem muito menos uma novidade. O Oscar historicamente dá o seu reconhecimento aos "mediúnicos". Basta lembrarmos, de memória, de Robert De Niro como o boxeador Jake LaMotta em Touro Indomável (1980) ou George C. Scott como o militar Patton no filme homônimo de 1971. O que tem chamado atenção é a recorrência cada vez mais constante e uma preocupação aparentemente desmesurada dos votantes da Academia para a forma como vem se dando a mediunidade nos atores concorrentes. Parece estar contando pouco a criação e valorizando-se por demais a imitação — imitação talvez seja uma palavra forte, então pensemos algo como "maior captação de trejeitos previamente conhecidos".
E aí, neste jogo todo, como fica o Leonardo DiCaprio de O Aviador, concorrente ao prêmio no mesmo ano? Goste-se ou não do filme de Martin Scorsese (eu gosto muito...), há de se reconhecer que DiCaprio está num de seus momentos mais maduros como ator, senão o maior de sua carreira até o momento. A forma como recria a personalidade e a estranheza do produtor e milionário Howard Hughes, desde os transtornos obsessivo-compulsivos até a impulsividade ao lidar com a rica sociedade americana da época em que viveu, é algo de encher os olhos. O ator não copia trejeitos, porque há poucos registros de Hughes em movimento. Nem muito menos se baseia em algo especificamente da personalidade do retratado. Há ali uma troca ator-diretor que faz do Hughes de Scorsese uma criação absolutamente original, de densidade e pincelamento ímpares.
O mesmo se poderia dizer da Nicole Kidman de As Horas, vencedora de 2003. Na disputa, estava ao menos mais uma "mediúnica": Salma Hayek, pela pintora Frida Kahlo de Frida. Era bem menos intensa que Kidman, é verdade. Porém, esta, num mundo justo, não seria páreo para a força de Julianne Moore em Longe do paraíso. Moore, um dos grandes nomes da atuação contemporânea e ainda não agraciada com o Oscar (concorreu também por Fim de caso, Boogie nights e o mesmo As Horas), interpretava uma mãe de família dos anos 50 cuja vida é abalada pela descoberta da homossexualidade do marido. Não há muito como definir a presença de Moore na tela. É daquelas coisas que se precisa olhar e sentir. Porém, a moça ficou para trás por conta da mediunidade de Kidman como a escritora suicida Virginia Woolf. A atriz não está mal, de forma alguma. Porém, além do pouco de tela (o que não lhe permitia desenvolver tanto a personagem), Kidman parecia se forçar a parecer uma outra pessoa — não apenas pela tão comentada maquiagem, mas também pela postura, gestos e jeitos de olhar. Era claramente um trabalho de afetação razoavelmente bem feito. Nicole se saíra muito melhor com a original Satine, no musical Moulin Rouge, um ano antes. Mas a Academia preferiu deixar pra lá e dar o prêmio à gritaria de Halle Berry em A última ceia — que não era "mediúnica", mas ganhou num ano atípico, quando o Oscar decidiu quebrar o tabu e dar os dois prêmios principais de elenco a negros (o outro ganhador foi Denzel Washington, em Dia de Treinamento, criação original). Aliás, no mesmo dia em que Nicole Kidman ganhava por As Horas, Adrien Brody também levava com personagem real, por O Pianista, já adiantando o que viria a acontecer nos últimos dois anos.
Quase idêntico ao caso de Helen Mirren em A Rainha e Forest Whitaker em O último Rei da Escócia, mas não é para tanto. A inglesa Mirren empresta enorme dignidade à personalidade que o filme retrata, conseguindo dar a ela nuances muito além do que poderia ser chamado de verídico. A cena da caminhonete atolada, em que Elizabeth II se vê sozinha no campo e parece colocar em xeque todas as suas convicções e angústias ao olhar para um cervo é de uma grandiosidade que o filme nunca consegue atingir novamente. Muito disso se deve a Mirren. Algo semelhante ocorre a Whitaker: apesar da interpretação acima do tom, na busca por algum "descontrole controlado" da personalidade de um ditador africano, o ator consegue momentos só dele, ainda que o filme não pareça valorizá-los, preferindo captar os instantes mais exasperados. Só mesmo Reese Whiterspoon como June Carter em Johnny & June sobra no quarteto de 2006 e 2007. Bonitinha, mas ordinária, ela faz uma June Carter próxima da correção absoluta, deixando de lado a busca por algo que fuja da burocracia de uma interpretação oscarizável. A atriz se beneficiou de um ano pouco forte às mulheres no Oscar — sua principal concorrente, se havia, era Felicity Huffman como o transsexual de Transamérica, de fato um papel bastante mais complexo que o de Reese. Em vista de tudo aí dito (e muito mais, que o espaço não permite), apenas penso que talvez esteja na hora da Academia de Hollywood criar uma nova categoria de interpretação: a de "melhor ator/atriz mediúnico". Quem sabe assim não se assume logo a preferência pela recriação pura e simples do real e deixa espaço e melhores chances às criações da ficção — ou, mais corretamente dizendo, a busca pela originalidade, que é uma das molas propulsoras do cinema, afinal. Marcelo Miranda |
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