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Quinta-feira, 5/4/2007
A política de uma bunda
Marcelo Miranda

O Cheiro do Ralo

A primeira imagem é a de uma imensa bunda, que toma a tela rebolando e se chacoalhando enquanto sua dona caminha pela rua. Estamos no universo de Lourenço Mutarelli, escritor e quadrinhista adaptado aqui pelo diretor Heitor Dhalia. Estamos no mundo de O cheiro do ralo. E quem não se dispuser a entrar nesse mundo, não terá uma boa experiência. Mas quem topar, sai perturbado.

Porque é muito fácil desgostar de O cheiro do ralo. Filme degradante sobre degradação, linguagem seca sobre a secura. É um objeto estranho na atual cinematografia brasileira, nada se assemelha a ele. E como qualquer objeto estranho, deve ser olhado e avaliado com estranheza - e é justamente disso que trata o filme: a estranheza de um homem torpe que encontra a própria humanidade na bunda de uma balconista de lanchonete.

Para mal ou bem, o filme é marcado pelo jeito muito próprio como o diretor Dhalia se coloca no encadeamento da narrativa e das imagens - ainda mais considerando o trabalho de afetação que foi Nina (2004), seu primeiro longa-metragem, em que a falta de sutilezas na construção da personagem principal e o contraponto excessivamente perverso simbolizado pela velha interpretada por Myriam Muniz o tornavam um filme de razoável fraqueza.

Não é o que acontece em O cheiro do ralo. Selton Mello se entrega ao protagonista auxiliado pela forma como Dhalia o filma. Os trejeitos, as nuances, as manias e o olhar e corpo sempre encurvados são catalisados pela câmera, sem que isso se torne uma espécie de caneta de cor pulsante a reafirmar as condições estranhas características do personagem ou mesmo do ambiente que o cerca. O tal homem é Lourenço (homônimo do autor da história), vivido por Selton naquela que deve figurar, até prova em contrário, como a grande interpretação desde que se tornou ator. Lourenço é a alma do filme, e para isso precisava de um intérprete à altura.

O filme se estrutura de forma cíclica: o protagonista toma café, vai para o escritório, onde compra e nega objetos, justifica o mau cheiro como vindo do ralo do banheiro, dorme, volta a tomar café e assim adiante. A recorrência de diálogos e situações dá o tom de deboche e tragicomédia, mesmo quando o enredo envereda por caminhos cada vez mais profundos. Ri-se da forma como vão se acumulando as situações, e não dos envolvidos. Há, de fato, algo de muito político na colocação do comprador perante seus vendedores, em todo aquele jeito de abusar do poder - algo já existente em Nina e reafirmado agora.

Veja acima o trailer de O Cheiro do Ralo

A política de O cheiro do ralo se manifesta em aspectos dentro e fora do filme. Fora, pela insistência de Dhalia em levar às telas trama tão controversa, bancando na base da cooperação o dinheiro necessário à empreitada. O orçamento de filmagem foi de R$ 300 mil, captado junto aos próprios realizadores - ninguém de fora quis bancar um projeto com o nome em questão e sobre tema tão "desagradável" com protagonista detestável. Outros R$ 300 mil foram usados para finalização. Apenas quando o filme causou frisson no Festival do Rio e, em seguida, na Mostra de São Paulo, ambos no segundo semestre de 2006, é que alguém apareceu para ajudar O cheiro do ralo a, de fato, existir junto ao público. A distribuidora Filmes do Estação adquiriu os direitos da fera.

Já dentro do próprio filme, a política está nas relações entre forte e oprimido, sendo que este último sempre vai se dar mal por conta da imponência do primeiro. Pode parecer um tanto afetado o jeito como Dhalia coloca Lourenço perante seus "subordinados", mas aí reside a graça da brincadeira toda: um ser tão detestável vai se moldar apenas com a parte mais "grandiosa" do corpo feminino. O que seria mais coerente, e também irônico, do que isso, afinal? Não se trata de maldade que chega à redenção, e sim de complementação a uma mente inicialmente doentia.

Dhalia não é cínico de insinuar que Lourenço vai se tornar um novo homem após realizar o maior de seus fetiches. Aquilo surge na vida dele como algo a mais dentro de seus mecanismos de dominação - porém, é o único desses mecanismos que ele não consegue realmente dominar. Ele deixa-se render. O encontro entre o usurário e a "bunda" guarda em si um instante quase apocalíptico: é quando, pela primeira vez, Lourenço se vê numa posição inferior - literalmente, inclusive, pois ele precisa se ajoelhar para alcançar o sonho.

A política, ali, se inverte: o poder está com o oprimido, e resta ao outro se render a esse poder se quiser, em seguida, continuar poderoso. Nesse jogo de peso e contrapeso está a complexidade da narrativa do filme. E o próprio Dhalia entra na jogada: ele se ergue após o fiasco de Nina para se firmar como um cineasta a ser mais bem acompanhado a partir de agora. O cheiro do ralo não é uma redenção, e sim uma complementação. O cheiro do ralo equivale, para Dhalia, à bunda que tanto fascina Lourenço.

Marcelo Miranda
Belo Horizonte, 5/4/2007

 

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