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Segunda-feira, 23/4/2007 Knutilidade Pública Verônica Mambrini Ou Knut, um ursinho em defesa do bom jornalismo
O currículo de Knut cresceu muito mais rápido do que ele: o fofo ursinho polar nasceu em 5 de dezembro de 2006 num zoológico alemão, e menos de um ano depois, no último 23 de março, a ONU anunciou que o urso-bebê será "garoto-propaganda" de uma conferência das Nações Unidas sobre a proteção das espécies, em 2008. No mesmo dia, posou para fotos com Sigmar Gabriel, ministro do Partido Social-Democrata na Alemanha (que afirmou que o bebê-urso é "um doce"), em evento com mais de 100 jornalistas do mundo todo presentes. Depois da comoção geral causada pelas opiniões de um grupo de ativistas alemães de direitos dos animais, que acreditam que o urso nunca se integrará entre os seus, Knut ganhou seu próprio programa de TV: Knut, das Eisbärbaby, ou, em tradução livre, "Knut, o urso polar bebê". Ah, Knut também tem sua página na Internet e um blog. Mas afinal, o maior mérito de Knut é ter nascido: há mais de 30 anos não nascia nenhum filhote de urso polar no zoológico de Berlim. Toda essa atenção não é para menos: se você fosse foto-repórter, resistiria a essa bolinha de pêlos graciosa? Claro que não! É fofura demais, agravada pela comoção que causa saber que ele foi rejeitado pela mãe, uma ursa de circo da antiga Alemanha Oriental. Pois bem: a imprensa realmente não resistiu. Knut é retratado quase como um cachorrinho de estimação coletivo, amigo dos alemães e, quiçá, da Humanidade. Nenhuma foto aponta para o urso anti-social e deslocado do seu ambiente que os ativistas ambientais advertiram que com o tempo o ursinho se converterá. Knut, sem muito esforço, trabalha por uma boa causa: cada vez mais, chama a atenção das pessoas para a questão dos animais em extinção e rapidamente, se transforma num símbolo de esperança para árduas batalhas ambientais. Já foram vendidos cerca de 2,4 mil ursinhos de pelúcia Knut. Eu também, entre um Knut de pelúcia e um Al Gore de pelúcia, ficaria com o doce quadrúpede, em nome dessa causa. Nada pessoal contra Al Gore. Há um motivo a mais para celebrarmos a fofura de Knut: entre tantos feitos, em sua epopéia o ursinho também parte em defesa do bom jornalismo. E o que é mais notório: o faz sem nem perceber. Todo mundo sabe o que é jornalismo, pelo menos de um modo prático; a maioria das pessoas percebe também a diferença entre um artigo de opinião e uma notícia, por exemplo. Mas algumas sutilezas ficam a cargo de especialistas - não necessariamente jornalistas, mas também (e sobretudo) teóricos de comunicação. E Knut é a estrela-mor dos últimos dias quando a categoria é um determinado tipo de notícia, o fait-divers. O fait-divers é uma história que: 1) foge às classificações de editorias, ao não se enquadrar facilmente nas seções de notícias às quais estamos acostumados a ler, como Política, Cultura, Economia ou Cidades; 2) trata de uma história de interesse humano, como um drama familiar, uma aberração da natureza, curiosidade científica ou bizarrice comportamental; 3) a história reportada no fait-divers não tem dimensão histórica (o dono dessa última idéia é o teórico francês Roland Barthes); por exemplo, um assassinato passional cairá no esquecimento, enquanto um assassinato político sobrevive em outros contextos, fora da página policial do jornal. Essa falta de perenidade histórica é triste: Knut, daqui a algum tempo, será esquecido ou talvez trocado por outros bichos fofos. Como o "carinhoso" casal de lontras de Vancouver que nadava de mãos dadas. O fait-divers se aproxima da anedota, foge do contexto da realidade. É sempre imprevisível, pitoresco e muitas vezes bizarro. Qual é, então, sua importância? A principal, creio, é de atrair leitores. Por esmiuçar e jogar no terreno do público instintos, paixões (e por que não perversões?) humanos, esse tipo de notícia sempre terá, em qualquer sociedade letrada, seu público cativo. Em outras palavras, se jogarmos o fait-divers no mesmo balaio do jornalismo dito sério, podemos entender que ele tem o dom de chamar a atenção até de quem geralmente passa longe do caderno de economia ou cidades do jornal. Em tempos de notícias de repercussão e alcance globais, ele tem até seção própria em grandes portais de notícias. Geralmente os jornalistas não gostam muito de escrever fait-divers; mas esse gênero é considerado um mal necessário. Mas afinal, é bem melhor tratar da indiscutível candura de um urso-polar bebê do que da bizarrice de gêmeos siameses ou cabritos de duas cabeças - uma evolução dos tempos, que reflete os interesses dos leitores. Mas é inegável que essas notícias, escabrosas ou não, tragam à frente da tevê, da tela do computados ou das páginas impressas bem mais leitores do que o mais primoroso artigo de política ou economia é capaz. E com leitores, vem a publicidade, necessária para pagar salários. Outros modelos de jornalismo - como esse próprio Digestivo - tornam a notícia uma commodity, e o fait-divers um gênero desnecessário. De todo modo, quem trabalha com hard news ainda vai precisar conviver com Knut por algum tempo. Há quem defenda que esse gênero não se define pelo assunto, e sim pela narrativa: o modo sensacionalista de tratar os fatos, puxando pelo escândalo, pelos aspectos bizarros ou pitorescos, é o que faria o fait-divers. Assim, um escândalo político pode ser contado pelas tintas do melodrama e assim, migrar para o plano das futilidades a serem substituídas ciclicamente na mídia. O quão fresco está na nossa memória o escândalo do Mensalão? Quem saberá lembrar em detalhes a "novela" acompanhada por inquéritos e noticiários inteiros e satirizada à exaustão? Um dos motivos para o esquecimento tão precoce é esse olhar sobre a notícia, que se nutre de paixões e de escândalo para substituí-lo assim que o episódio se esgota emocionalmente. Fugimos do mundo-cão para cair no mundo-urso. Verônica Mambrini |
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