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Sexta-feira, 27/4/2007
Os enciclopedistas franceses rolam nos túmulos
Ana Elisa Ribeiro


Ilustração de Guga Schultze


Enciclopédia é uma palavra que vem do grego. Trata-se de alguma formulação assim como "conhecimento circular ou geral". Quem diz isso é um outro livrão, também de consulta, chamado dicionário. Ambos são resultado de alta tecnologia. O empolgado filósofo Pierre Lévy diria que são, de alguma forma, "tecnologias da inteligência". O que quer dizer isso?

Uma tecnologia da inteligência é um dispositivo que, de alguma maneira, tenta reproduzir, simular ou converter o processo mental humano em produto. Mais ou menos assim como a invenção de algumas máquinas foi proposta como forma de representar o pensamento humano, que, segundo alguns, funciona por associação. Na Internet, quando leio a palavra "jornal" e ela está marcada como link, posso clicar nela e cair em algo associado a isso. Inclusive a uma imagem ou vídeo. Essa associação entre idéias representada por um sistema é uma tecnologia da inteligência.

Atualmente, a natureza das técnicas nos permite dar passos mais largos do que em outros tempos, mas é meio esquisito comparar, como se fossem irmãs, tecnologias de naturezas e épocas muito diferentes. É improdutivo e pouco esclarecedor falar do bisavô em relação ao bisneto como se fossem irmãos. O que quero dizer é que são linhas completamente diferentes nas relações de parentesco, certo? A linha reta dos irmãos ou dos filhos quanto aos pais forma um contexto bem diferente da linha muito mais difusa entre bisavôs-tios e primos de quarto grau. No entanto, todos eles formam um sistema em que uns não existiriam, em alguma medida, sem os outros.

A enciclopédia de papel, idealizada por intelectuais franceses alguns séculos atrás, foi alta tecnologia. Não apenas porque era um projeto pretensioso, mas também porque dependia de uma organização muito grande, inclusive com remissões internas e recursividade. Múltiplas reedições razoavelmente constantes. Caber todo o conhecimento do mundo em algum lugar é tarefa para Hércules, mas essa idéia permeou muitos projetos da humanidade. Muito embora a maioria deles não fosse exatamente para todos os humanos.

Para embaçar um pouco a cena, é só pensar o seguinte: quando um grupo de seletos senhores resolve empreender um livrão em que se coloque todo o conhecimento do mundo, quem elegerá esse "conhecimento"? Que coisas devem ser postas ali? Quem lerá essa livro? Para quem ele será escrito?

A idéia é muito boa, mas a natureza das técnicas não permitia que ela fosse levada a cabo com dinamismo e custo ideais. No entanto, com a relativa democratização do livro e da alfabetização, as enciclopédias tornaram-se comuns, inclusive nas estantes das casas de muitas pessoas. Durante longo tempo, as coleções foram fonte de pesquisa para toda a gente, especialmente para os estudantes.

Pesquisar a Barsa ou a Mirador fazia parte do plano óbvio da minha geração no ensino básico. Nem sei quantas vezes copiei os verbetes de plantas, abelhas e cientistas famosos. A fonte era forte, gozava de credibilidade. Dizer que tirou a vida de Galileu da Barsa dava valor de verdade à informação.

A cópia era a face escura do problema. (Sim, problemas têm faces claras). A escrita automática de textos alheios era comum e aceitável. O professor dava nota máxima a todos aqueles 30 ou 40 trabalhos idênticos. E essa prática ainda é comum porque o conceito de pesquisa vigente na escola era sinônimo de uma penosa leitura sem aplicação ou de um torturante modo de responder a uma questão ampla demais. Eram incomuns (e ainda são) a problematização, a reflexão e a busca por respostas a problemas que não estivessem mastigados nas páginas de algum livro.

Chegaram os anos 1990 e, com eles, a relativa popularização do computador e da Internet. (Atentem para o "relativa"). Junto com essas novas técnicas de fazer as mesmas coisas, vieram as tecnologias de inteligência para buscar e acessar informação. Jeitos mais rápidos e mais precisos de achar verbetes, conceitos, significados. Mas quem dá sentido a isso tudo? O leitor. Bom e velho leitor. Que jamais teve que ser tão seletivo, já que os filtros foram quase todos desativados e ganharam outras funções.

Se as enciclopédias de papel eram escritas por senhores doutores e editadas por celebridades do mundo intelectual, os análogos digitais não passam por esse processo. Não exatamente. Podem ser feitas com as mesmas estruturas, mas podem, agora, ser abertas à intervenção do leitor/"usuário". Já não gozam, de forma automática, de tanta credibilidade e nem sofrem muito com cortes editoriais. Quem dá aos verbetes notas mais baixas ou mais altas é a própria assistência, que precisa estar disposta a colaborar.

Num círculo meio estonteante, trata-se de uma discussão que até as histórias em quadrinhos já levantaram: who watches the watchmen?, quem "vigia" os vigias?, quem cuida do que será dito? Isso valia para os livros de papel e continua valendo.

A cópia, firme e forte, está aí. Agora menos penosa, bem menos torturante do que manuscrever 4 ou 5 páginas de letra miúda, em colunas apertadas. Nova técnica para fazer as mesmas coisas. Sobra mais tempo, hoje, para jogar videogame. O professor, fazendo a mesma coisa, dá nota para 30 ou 40 trabalhos iguais, tirados dos mesmos sites. Não porque os alunos ajam de má-fé, porque nem todos são crápulas, mas porque a idéia do que seja pesquisar, de fato, ainda não mudou.

Lembro muito de uns meninos, em uma escola classe A, querendo saber sobre as bruxas. O laboratório de informática estava fechado e então eles se sentiram órfãos do Google. Foi quando o bibliotecário lhes indicou o corredor das enciclopédias de papel. Passaram diante das prateleiras como se andassem num castelo do terror. Não sabiam dar sentido à interface, altamente tecnológica, das lombadas de livros de consulta. Não tinham idéia de que a ordem alfabética lhes serviria muito naquele momento. E quase correram das capas duras. Quando lhes foi apresentado o modo off-line de buscar, aprenderam, razoavelmente rápido, como encontrar verbetes, mas a palavra "bruxa" não estava lá. Desespero.

Achar que as coisas chegam sempre prontas não é facilitador. Pensar que um buscador eletrônico pode resolver minhas questões não é verdadeiro, nem no mundo da escola e nem no mundo do trabalho. Na esfera afetiva, nem se fala. Não saber questionar é grave. Ao encontrar pseudo-respostas, é necessário elaborá-las, confrontá-las com outras, discuti-las para não se parecer demais com um robô japonês.

Quando aqueles adolescentes descobriram que "bruxa" não vinha pronto, lhes foi sugerido que procurassem sobre elas no verbete "inquisição". Quando depararam com 5 páginas inquisitoriais, quase choraram. Pergunta sintomática: "mas terei que ler isso tudo só pra aproveitar poucas informações?". Bingo! E é isso o que teremos que fazer o tempo todo, para o resto das nossas vidas, mesmo se elas forem pacatas. Sempre foi o que fizemos, em grande medida, mas agora os antigos filtros estão ocupados em se reconfigurar, diante de um novo sistema de possibilidades. Ainda bem que os alunos ainda eram muito jovens. Mais grave é quando alguém só se apercebe disso quando já passou dos 20 anos.

Os "antigos filtros" podiam ser tão precisos quanto os motores de busca atuais. Editores e jornalistas, por exemplo, andam às voltas com suas novas atuações. De uma forma ou de outra, andam confidenciando no bar as mudanças que aconteceram por conta da Internet. Nem que lhes pareçam de sucesso improvável.

A Wikipedia empregou técnica nova para executar uma idéia antiga. Diderot e colaboradores talvez dessem pulinhos de contentamento diante da possibilidade infinita de memória dos novos dispostivos de armazenagem em rede. Muito provavelmente teriam um cachorro chamado Link e uma cadelinha simpática chamada Arroba. Mas não estou certa de que bateriam palmas para a possibilidade de intervenção do venerável público no projeto. Que papel os editores franceses teriam nessa seleção de "conhecimento" apto a figurar na enciclopédia? E que história é essa de não se valorizar a autoria? Que identidade esse material tem? Talvez pesquisassem formas de controle de acesso ao material.

Embora sejam parentes de semblantes muito parecidos, enciclopédia e Wikipedia têm funcionamentos bastante desalinhados. O ponto fundamental disso é, justamente, o filtro (ou a falta dele). Não do "filtro" que poderia se constituir "naturalmente", com o controle de uma espécie de "mão invisível" da intervenção do público-leitor (para Teresa Colomer, o "escrileitor"), mas o filtro encarnado em um (ou dois ou três) editor que tudo vê, tudo decide e, por fim, carregado de uma credibilidade concedida com base em sua carreira (ou personalidade ou trajetória ou conhecimento ou pelo próprio leitor), empresta um "selo de qualidade" presumido àquele material (nem sempre palpável).

Pesquisar na Wikipedia não é como pesquisar nas enciclopédias de papel. Ainda não é e não sei se o projeto é torná-las parentes em linha reta, vertical ou horizontal. O fato é que são dispostivos com funcionamentos diferentes. Ambos valorosos em seus respectivos contextos. Em qualquer caso, no entanto, é preciso observar que inteligência é diferente de deglutição; e pesquisa é diferente de repetição. Ensinar as pessoas a fazer uso do racioncínio, da capacidade de leitura, crítica e reelaboração sempre foi fundamental, agora é ainda mais.

Todas as vezes que caí na Wikipedia, achei os textos mal-escritos, ruins e confusos. "Caí" lá porque ela era um dos resultados primeiros da busca, não porque a tenha entre meus links favoritos. Aquela profusão de links no texto me irrita mais do que ajuda. Mas também não achava a enciclopédia de papel a melhor coisa do mundo. Bom mesmo é ler bons textos e perceber neles consistência. A possibilidade de um rearranjo fica a cargo da minha capacidade de associar, pensar e propôr.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 27/4/2007

 

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