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Segunda-feira, 23/4/2007
O físico que era médico
Eduardo Mineo

Qualquer livro que tenha pelo menos umas seiscentas páginas merece ser lido. Sou fiel a esta idéia simplesmente porque acho muito improvável que alguém tenha a habilidade de escrever besteiras durante tantas páginas seguidas. Mais cedo ou mais tarde, por mais que o autor lute contra isso, sai alguma coisa aproveitável dali, é impossível não sair.

O físico (Rocco, 1996, 596 págs., The physician), de Noah Gordon, por exemplo, merece bastante ser lido. Devo admitir que li suas primeiras páginas com o mesmo receio que eu teria ao folhear qualquer publicação de J.J.Benítez, porque tive a sensação - ok, o preconceito raivoso, melhorou? - de que O físico se tratava dessas coisas que as pessoas usam para simular leitura nos metrôs, mas mudei logo de opinião e me convenci de que este era realmente um bom livro.

É sim, um bom livro, mas se eu fosse o autor, eu evitaria bastante o uso do verbo "fuder" nas flexões mais impressionantes que já li na minha vida. E a tradução ruinzinha não me ajuda muito a falar bem do livro, a começar pelo título erradíssimo ("physicist" é físico; "physician" é médico). Não foi um erro tão primário, mas foi um erro feio. De qualquer forma, como isto não chegou a prejudicar a história, evitarei este assunto porque o tradutor já foi ridicularizado o suficiente pelos comentários no site da Livraria Cultura. Vamos guardar as nossas cintas por enquanto.

Mas enfim, a história. A história do livro acontece por volta do século XI (ou X? 1100, 1000 mais um...sei lá, por aí). Um menino inglês perde os pais e é adotado por um barbeiro-cirurgião, que é um sujeito que tem alguma noção de enfermagem e ganha a vida vagando pelas cidades inglesas e tratando das pessoas em troca de dinheiro e comida. Com o tempo, Rob Cole, o menino, aprende a profissão e passa a ajudar seu tutor até atingir a idade adulta.

Um dia Rob Cole conhece um judeu, um médico, um médico de verdade, formado na grande faculdade de medicina da Pérsia e a partir daí, o objetivo de Cole é se formar nesta faculdade. Começa, então, sua viagem que duraria dois anos. Esta é a melhor parte do livro, pois Noah Gordon descreve muito bem todo o trajeto, desde os vilarejos alemães até os desertos traiçoeiros do Oriente Médio. É uma boa experiência de leitura.

Evidentemente há uma grande questão aí, senão o livro não teria muita graça. A questão é que a faculdade de medicina não aceita cristãos; apenas mulçumanos e judeus. E Rob Cole, convencido de que seu destino era se formar na Pérsia, passa a estudar os judeus que encontra pelo caminho de sua viagem, seus costumes e sua língua para se passar por um deles e ser admitido na faculdade. Aqui é outro ponto com muita informação, muitos detalhes sobre a cultura judaica, assim como, a partir da chegada de Rob Cole à Pérsia, de muitos detalhes sobre a cultura mulçumana. E claro, uma boa discussão sobre fidelidade religiosa e fé que acompanha o personagem até o final do livro.

Em muitos momentos parece que Noah Gordon tende para o lado dos judeus, principalmente por causa de algumas implicâncias com os mulçumanos durante o livro - que no começo são engraçadas e que vão ficando irritantes com o tempo -, mas até alcançar a última página eu mudei totalmente minha opinião porque ele vai nos mostrando que em cada tipo, em cada religião, em cada país, em cada profissão, há os nobres e os imbecis. E claro, estes últimos em sufocante maioria.

Sendo um médico, era de se esperar que Noah Gordon desse ênfase aos detalhes da história da medicina e de suas grandes questões, como o debate sobre a utilização de cadáveres humanos para pesquisas, o teste de novos medicamentos em pacientes, etc. E o assunto no livro é ainda mais intenso pois era uma época de forte atuação da igreja, onde os médicos eram freqüentemente acusados de serem bruxos - se bem que alguns deveriam ser mesmo; já me consultei com cada tipo que não entendo como foram proibir a igreja de queimá-los. Portanto Rob Cole carrega sempre esta preocupação em controlar sua busca pela cura, que é a forma pela qual Noah Gordon discute o conflito entre a ética e o progresso.

Há ainda algumas passagens de sexo que eu estou pensando numa forma de comentar sem muito moralismo, mas não sei como fazer isso. Tudo bem, deve haver algo ali de sublime, de artístico, mas eu não consigo ler este tipo de coisa sem me sentir como uma velhinha da década de 60 que quebrava discos dos Beatles. Eu vejo a leitura como um contato muito direto, como se um estranho me abordasse na rua e me contasse uma história. E imagino que seria terrível ser abordado, digamos, tomando café na padaria, por alguém falando "Vixi, aí ela subiu na mesa, tirou a roupa e foi u-hu!, U-HUUUUUU!!!" com todas as devidas gesticulações e interpretações. Muito constrangedor. Evidentemente, eu não posso dizer que é errado escrever sobre sexo, assim como eu não poderia dizer que é errado comer com os pés, mas eu aconselharia, do fundo do meu coração, as pessoas a evitarem este tipo de coisa. É tão mais fácil.

Mas são apenas detalhes perto do que este livro tem a oferecer. Sua leitura é mesmo como tomar um café na padaria. Pode eventualmente espirrar sangue em você, ou sentar um elefante ao seu lado, mas na maior parte do tempo, é uma experiência agradável. Se puder, leia o original. Aliás, sempre leia os originais. Eles também merecem ser lidos.

Para ir além





Eduardo Mineo
São Paulo, 23/4/2007

 

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